As estreias mais estimulantes são dois filmes dirigidos por mulheres: uma veterana cineasta franco-belga, uma jovem cineasta brasileira. Varda por Agnès, de Agnès Varda, é um documentário com laivos de ficção; Mormaço, de Marina Meliande, é uma ficção com caroços espessos de documentário.
Comecemos por Mormaço. Ambientado no Rio de Janeiro na época das grandes transformações sofridas (este é o verbo) pela cidade às vésperas da Olimpíada de 2016, tem como protagonista uma jovem defensora pública, Ana (Marina Provenzzano), que tenta evitar o despejo de moradores de um bairro, a Vila Autódromo. A própria Ana mora num prédio no centro do Rio que está sendo progressivamente desocupado para a construção de um hotel de luxo.
Personagem e ambiente
Resumido assim, pelas linhas gerais de seu argumento, o filme se conecta logo de cara a duas obras recentes do nosso cinema: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, e Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé. De certo modo, seria uma combinação dos dois, com o eixo central que os une: o conflito entre o interesse voraz do capital e o direito dos indivíduos a permanecer onde vivem.
Mas o que em Aquarius era uma possibilidade sugerida – a simbiose entre a personagem e seu ambiente, entre o corpo da moradora e o corpo do prédio que habitava – torna-se em Mormaço metáfora explícita: Ana adoece junto com o ambiente que a cerca, e o filme mergulha corajosamente no fantástico.
Para além do “assunto” e do enredo, o que há de mais belo e interessante na abordagem de Marina Meliande é sua imersão no mundo físico, sua ênfase no concreto, sensorial. O filme começa com a imagem de um paredão de pedra em que o musgo e o bolor desenham estranhos mapas. Essa imagem, seguida por uma densa nuvem de poeira que engolfa a cidade e a protagonista, anuncia a atenção especial que será dada aos elementos da natureza (água, terra, ar, fogo), aqui e ali violentados pela ação do homem.
Numa cena aparentemente descolada da trama central, Ana recosta-se numa árvore num parque e come esganadamente a fruta desconhecida que cai a seu lado. Esse enganoso desvio narrativo tem a ver, por um lado, com a recorrente preocupação alimentar da protagonista, e por outro, com a interpretação que ela faz de seu próprio processo de transformação orgânica. Seja como for, reforça a ideia de que há uma comunicação oculta e enigmática entre o indivíduo e a natureza, como se esta quisesse expressar àquele seu desespero, seu pedido de socorro, só conseguindo fazê-lo, enfim, sob a forma da doença.
Movimento pendular
Da perspectiva de uma leitura sócio-política mais imediata, Mormaço remete a uma situação dramática muito comum em nosso cinema moderno, que é a do personagem de classe média, ilustrado, que oscila entre a classe dominante e os oprimidos, optando por um lado ou por outro.
Esse personagem pendular, cuja recorrência no Cinema Novo foi estudada por Jean-Claude Bernardet no livro Brasil em Tempo de Cinema, se divide em dois em Mormaço: a advogada Ana defende do despejo os moradores da Vila Autódromo; o arquiteto Pedro (Pedro Gracindo) trabalha para a construtora que desaloja pessoas. No cinema brasileiro recente, esse lugar social intermediário é ocupado, por exemplo, pela psicanalista luso-brasileira que dá suporte a mulheres vítimas de violência de uma área pobre do Rio.
Um dos pontos fortes de Mormaço é o impressionante registro documental de episódios de destruição e transformação urbana – e a incorporação orgânica disso na narrativa ficcional. Não é apenas o documento, mas a valorização estética e emocional de seu impacto. O ponto fraco talvez seja uma certa irregularidade na dramaturgia, em especial a disparidade de atuações, com alguns protagonistas muito bons (Marina Provenzzano, Analu Prestes) e outros (possivelmente não profissionais) patinando numa impostação travada de discurso militante. Um problema que, a meu ver, Eliane Caffé equacionou de modo mais satisfatório em Era o Hotel Cambridge.
Nada disso tira o brilho e o interesse de Mormaço, reação estética corajosa e urgente aos tempos de destruição que estamos presenciando.
A aula magna de Varda
Quem quiser conhecer o cinema de Agnès Varda (1928-2019), uma das diretoras centrais do cinema moderno, fará bem se começar pelo fim, isto é, pelo extraordinário filme-testamento Varda por Agnès, que teve sua première no último festival de Berlim, em fevereiro, um mês antes da sua morte.
Tendo como fio condutor algumas palestras da cineasta para públicos diversos, o documentário passa em revista toda a sua cinematografia em tom de conversa descontraída, repleta de humor e autoironia, ilustrada por trechos de filmes marcantes e cenas de bastidores.
O que vemos então é o funcionamento interno de um cinema ao mesmo tempo radicalmente pessoal e extremamente poroso aos seres, objetos e ambientes à sua volta. Do pioneiro La Pointe-Courte (1955), realizado quando Agnès não tinha experiência alguma em cinema e considerado precursor da Nouvelle Vague, ao magnífico Visages Villages (2017), passando por títulos seminais como Cléo das 5 às 7 (1962), Os Renegados (1985), Jacquot de Nantes (1991) e Os Catadores e Eu (2000), realizamos uma viagem por um cinema sempre inquieto, que mescla ficção, documento e memória de maneira única e encantadora.
“Nada do que é humano me é estranho”, a célebre frase de Terêncio, poderia servir de lema para o cinema de Agnès Varda. Diz ela, logo no início de seu último filme, que seu processo consiste em três coisas: inspiração, criação e compartilhamento. A ideia, a forma, a comunicação com o público.
Acaso e forma
O bonito é descobrir com ela como essas três coisas vêm juntas. Cada um de seus filmes está aberto aos acidentes de percurso, às descobertas de momento, à influência de seus participantes atrás e à frente da câmera. Mas essa permeabilidade ao entorno não significa um vale-tudo, um registro aleatório de qualquer coisa que aconteça no campo de visão da diretora. Há uma permanente busca da forma, a criação de dispositivos expressivos próprios para cada situação, guiada por um espírito ao mesmo tempo lúdico e crítico.
Um exemplo singelo e didático é o uso das cores em As duas faces da felicidade (1965), em que os fade-outs ao final de cada sequência se dissolvem não no preto, mas na cor predominante (e dramaticamente significativa) daquele segmento. Ou então os travellings laterais que pontuam a narrativa de Os Renegados, acompanhando a protagonista sempre da direita para a esquerda, “ao avesso do nosso movimento de leitura habitual”, sublinhando a postura “do contra” da personagem.
Nada como ouvir a própria artista falar dessa obra em que o uso da primeira pessoa não implica narcisismo, mas, pelo contrário, um gesto de amor ao outro, aos outros, a todos nós.
por José Geraldo Couto | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV (Fonte: Blog do Cinema)/ Tornado
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