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João de Sousa

Quarta-feira, Julho 17, 2024

O negócio obsceno dos privados com os dinheiros públicos da saúde

Eugénio Rosa
Eugénio Rosa
Licenciado em economia e doutorado pelo ISEG

SEGUNDA PARTE

Os dois principais problemas que estão a destruir o SNS – subfinanciamento crónico e promiscuidade público-privado – em nenhuma das propostas de nova Lei de Bases da Saúde que estão em debate na Assembleia da República constam medidas concretas.

Promiscuidade público-privado

O segundo grande problema que está a destruir e a corroer por dentro o SNS é a promiscuidade público-privado. E contrariamente aquilo que se afirma ela não se limita à existência de Hospitais PPP (Parcerias, Público Privadas). Esta é a forma de promiscuidade mais visível e fácil de combater, mas há outra que considero não menos grave e que é aquela que resulta de profissionais de saúde trabalharem simultaneamente em Hospitais públicos e Hospitais Privados com lógicas de funcionamento diferentes (nos hospitais públicos o objectivo são ganhos de saúde para a população e o combate às desigualdades – todos têm direito a cuidados de saúde -; nos hospitais privados o objectivo é o lucro e só tem direito à saúde quem tem dinheiro para pagar). Esta é uma forma de apoio ao sector privado de saúde (profissionais de qualidade formados e pagos pelo SNS a quem os privados exploram e pagam à peça) e resulta do facto do SNS (Estado) não oferecer as estes seus profissionais uma carreira e uma remuneração dignas, empurrando-os assim para a sobre-exploração privada para obterem um complemento de remuneração. E depois o Estado/SNS não consegue impor a exclusividade (quem trabalha no público não pode trabalhar no privado, tem liberdade de optar por um ou outro , mas não pode é estar nos dois).

Também em nenhum dos projectos de nova lei de Bases da Saúde este tipo de promiscuidade público-privada é sequer abordado e enfrentado com clareza, assim como a necessidade de dar aos profissionais de saúde carreiras e remunerações dignas em troca da exclusividade o que determinaria que no SNS a produtividade aumentasse bastante para benefício dos portugueses e, geraria poupanças para o SNS e melhores cuidados de saúde para os portugueses. Mas é uma questão “tabu” para todos os partidos políticos, todos têm medo de a enfrentar. Assim se vai deixando destruir o SNS e apoiando o negócio privado da saúde em Portugal por falta de coragem política e que depois se queixam com grandes e bonitas declarações sobre a importância do SNS mas sem efeitos práticos.

Como os privados exploram o financiamento público

O negócio privado da saúde em Portugal explodiu devido às dificuldades do SNS e ao financiamento público dos privados: em 2019, o SNS vai adquirir principalmente a privados 5.756 milhões € de Fornecimentos e Serviços Externos segundo o Ministério da Saúde.

 

Despesa Corrente do SNS – Milhões € – Orçamento do SNS 2018 2019
I. Despesas correntes 9 507 10 027
1. Despesas com pessoal 3 968 4 155
2. Compras de Inventários (aquisições de bens) 1 720 1 834
3. Fornecimentos e serviços externos 3 726 3 922
3.1. Produtos vendidos em farmácias 1 259 1 335
3.2. Meios complementares de diagnóstico e terapêuticas e outros subcontratos 1 234 1 166
3.3. Parcerias Público-Privadas (PPP) 444 474
3.4. Outros subcontratos 169 185
3.5. Fornecimentos e Serviços 620 762

 

Grupos de Saúde e Facturação no regime convencionado

A existência da ADSE diminui a pressão sobre o SNS (a ADSE é paga pelos trabalhadores da Função Pública com a contribuição de 3,5% sobre salários e pensões que, em 2018, representou um corte de 592 milhões € nos seus rendimentos. Se não existisse a ADSE, 1,2 milhões de portugueses que a utilizam teriam de utilizar o SNS o que agravaria ainda mais as dificuldades do SNS). Mas a ADSE também contribui para o financiamento do sector privado da saúde como provam os 878,8 milhões de € pagos pela ADSE a 5 grandes grupos privados da saúde em 2015/2018

 

Grupos de Saúde e Facturação apenas no regime convencionado 2015 – Milhões € 2016 – Milhões € 2017 – Milhões € 2018 – Milhões € SOMA – Milhões €
Luz 90,2 94,4 89,6 82,2 356,4
José de Mello Saúde 40,8 45,8 52,2 53,7 192,5
Lusíadas 41,3 44,7 45,2 41,1 172,4
Trofa 25,9 29,6 31,3 32,4 119,3
HP Algarve 7,9 9,6 10,4 10,4 38,3
SOMA 206,2 224,1 228,7 219,8 878,8
Total Regime Convencionado 346,3 375,2 387,6 377,1 1 486,2
% 5 Grupos no Reg. Convencionado 59,5% 59,7% 59% 58,3% 58,3%

 

Próteses

O negócio privado da saúde em Portugal – pela mesma prótese os grupos privados de saúde cobram à ADSE preços que variam entre 61% e 449,7% – é urgente que a ADSE controle estes preços o que tarda apesar de há muito anunciado (tal obrigação consta do Decreto que regulamenta o Orçamento do Estado de 2018)

 

Códigos das próteses CDM Preço facturado por diferentes prestadores pela mesma prótese (alguns exemplos)
Preço mínimo (€) Preço máximo (€) Diferença euros Diferença em %
14 736 160 19 345 31 141 11 796 61,0
15 894 143 2 458 11 726 9 268 377,1
14 239 175 23 150 29 574 6 424 27,7
11 895 292 725 4 333 3 608 497,7
12 485 977 792 3 723 2 931 370,1
13 844 849 3 184 5 702 2 518 79,1
13 557 351 455 2 501 2 046 449,7
13 847 740 1 144 2 998 1 854 162,1
11 061 480 509 2 327 1 818 357,2
16 711 599 303 2 058 1 755 579,2
16 765 796 445 1 593 1 148 258,0
11 954 906 227 1 299 1 072 472,2
11 059 915 1 272 2 282 1 010 79,4

 

Medicamentos

O negócio privado da saúde em Portugal – pelo mesmo comprimido os grupos privados de saúde cobram à ADSE preços cuja variação atinge +2950% (cerca de 30 vezes mais) – é urgente que a ADSE controle estes preços o que ainda não fez apesar de há muito tempo anunciado (consta de um Decreto lei de 2018), mas mesmo assim vai-se ver como e quando apesar da pressão interna que tenho feito

Códigos dos medicamentos CHNM Designação do medicamento Preço facturado por diferentes prestadores pelo mesmo medicamento (alguns exemplos)
Preço mínimo (€) Preço máximo (€) Diferença euros Diferença em %
10 002 890 Paracetamol 250 mg 0,12 3,66 3,54 2 950,0
10 003 070 Prednisolona 20 mg 0,10 4,75 4,65 4 650,0
10 005 896 Omeprazol 40 mg 0,43 8,85 8,42 1 958,1
10 016 985 Glucose 50 mg/ml 0,92 10,60 9,68 1 052,2
10 033 408 Bacitracina 35,2 mg 0,21 3,03 2,82 1 342,9
10 047 112 Tramadol 50 mg 0,18 1,79 1,61 894,4
10 067 008 Duloxetina 30 mg 0,62 6,63 6,01 969,4
10 068 455 Macrogol 40 0mg pó 0,62 12,67 12,05 1 943,3
10 069 030 Rosuvastatina 5 mg 0,92 10,00 9,08 987,0
10 080 589 Timolol 1 mg+ 0,56 18,39 17,83 3 183,9
10 089 734 Levotiroxina sód. 0,112 mg 0,05 0,66 0,61 1 220,0
10 108 664 Carbomero 2,5 mg 0,14 8,26 8,12 5 800,0

 

Hospitais privados vivem à custa dos profissionais do SNS

Os hospitais privados vivem à custa dos profissionais (médicos, etc.) do SNS a quem pagam à percentagem ou por ato realizado, não tendo de suportar outros tipos de custos (Segurança Social, etc.). Esta forma de promiscuidade público-privado é uma forma importante de financiamento dos grandes grupos privados de saúde pelo SNS porque assim não têm de pagar um corpo clínico próprio e permanente (só têm 12,9% de médicos e 10,3% enfermeiros).

Os profissionais de saúde sujeitam-se a tal exploração porque o SNS (o Estado) paga mal e não lhes oferece uma carreira digna. A promiscuidade não são apenas as PPP mas também a de profissionais. Nenhum proposta sobre a nova lei de bases da saúde em discussão na Assembleia da Republica introduz regras visando a exclusividade dos profissionais no SNS com carreiras e remunerações dignas. Neste campo importante para sobrevivência do SNS tudo continuará na mesma e o SNS a ser destruído

 

Natureza Institucional 2007 2011 2014 2015 2016 2017
Total – Hospitais 198 226 225 225 225 225
Hospital público e PPP 99 123 118 114 111 111
Hospital privado 99 103 107 111 114 114
Total – Médicos 21 024 20 539 21 893 22 874 24 003 25 130
Hospital público e PPP 17 675 18 616 19 618 20 231 20 933 21 897
Hospital privado – Médicos 3 349 1 923 2 275 2 643 3 070 3 233
Total – Enfermeiros 32 090 37 090 36 532 37 838 39 820 41 107
Hospital público e PPP 29 330 33 935 33 143 34 414 36 020 36 883
Hospital privado – Enfermeiros 2 760 3 155 3 389 3 424 3 800 4 224
A percentagem de hospitais privados e de médicos e enfermeiros nos privados
% Hospitais privados / Total 50,0 45,6 47,6 49,3 50,7 50,7
% Médicos nos H. Privados 15,9 9,4 10,4 11,6 12,8 12,9
% Enfermeiros H. Privados 8,6 8,5 9,3 9,0 9,5 10,3

 

A remuneração base média mensal líquida de um médico no SNS, em 2019, é apenas de 1.617 € (poder de compra inferior ao de 2011 em -13,8%) e a remuneração base média mensal líquida de um enfermeiro, em 2019, no SNS é apenas de 933 € (menos -12,1% que o poder de compra de 2011). Como será possível com estas remunerações reter e pedir a exclusividade a estes profissionais? A continuar assim a destruição do SNS é inevitável.

 

Carreiras / Cargos (dados da DGAEP – Ministério das Finanças) Remuneração Base Mensal Média BRUTA de um Médico no SNS Remuneração Base Mensal Média LIQUIDA (após pagar IRS, CGA e ADSE) de um Médico no SNS Remuneração Base Mensal Média BRUTA de um Enfermeiro no SNS Remuneração Base Mensal Média LIQUIDA (após pagar IRS, CGA e ADSE) de um Enfermeiro no SNS
Outubro 2011 2 695 € 1 752 € 1 331 € 992 €
Outubro 2015 2 620 € 1 307 €
Outubro 2016 2 786 € 1 328 €
Outubro 2017 2 771 € 1 327 €
Outubro 2018 2 776 € 1 328 €
Janeiro 2019 2 723 € 1 617 € 1 341 € 933 €
Remuneração de 2019 a preços de 2011 (após a dedução da inflação) 2 543 € 1 510 € 1 252 € 872 €
Redução da remuneração em poder de compra entre 2011 e 2019 dos Médicos e Enfermeiros -5,6% -13,8% -5,9% -12,1%

 

 


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