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Quarta-feira, Julho 17, 2024

As cobranças fiscais

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

“As dívidas fiscais não são dívidas de mercearia, são dívidas de cidadania”
(António de Sousa Franco)

Política fiscal

O “contribuintes de todo o país, uni-vos!” acabou por não mobilizar votos para as eleições europeias, mas o nível de fiscalidade continua elevado, muito por força:

  • do enorme aumento de impostos decidido por Vítor Gaspar;
  • da recuperação económica;
  • do recurso acrescido a mecanismos de liquidação por terceiros / retenções na fonte / autoliquidação / pagamentos por conta aplicado a rendimentos agora tributados de forma mais efectiva, como as rendas de casa.

Esta maior efectividade da tributação leva a que o sistema fiscal esteja a ser mais produtivo sem novo agravamento de taxas e escalões, pese embora não se ter esgotado o potencial de combate à fraude / evasão fiscais e a carga ainda recair largamente sobre os “tansos” do costume.

O pequeno desagravamento do IRS nos escalões inferiores fez-se aliás mais uma vez com entorse da lógica do imposto porque o desagravamento não foi extensivo a  rendimentos do mesmo valor quando auferidos por contribuintes que atingem os escalões superiores, o que reforça o incentivo à ocultação de rendimentos por parte de quem tem possibilidade de o fazer.

A definição da arquitectura do sistema fiscal e dos seus procedimentos básicos faz-se através de um processo político, e é legitimo exigir que seja o mais participado possível, e respeite os imperativos constitucionais, e as suas conclusões vertem-se em lei.

Liquidação

A importância, a que atrás me referi, dos mecanismos de liquidação por terceiros / retenções na fonte / autoliquidação / pagamentos  por conta têm contribuído para uma anestesia fiscal em que a campanha anual de entrega de declarações do IRS é vista como um momento de generosidade em que a Administração faz devoluções aos  contribuintes em prazos cada vez mais curtos, alimentando um momento de aparente felicidade geral,  sem que se questionem as tabelas de retenção na fonte, claramente abusivas, que geram a necessidade destas devoluções.

No entanto, por um lado existem operações que pela sua natureza suscitam dúvidas quanto à correcta aplicação da lei fiscal, e  por outro torna-se necessário um grande esforço de presença e de visibilidade da inspecção tributária  para garantir a entrada regular de receita.

No que se refere a dúvidas sobre a forma de aplicação da lei fiscal, exemplifico, para se perceber que as questões podem ser complexas, com algumas que foram sendo faladas na comunicação social, como:

  1. as dúvidas conexas com a liquidação de IVA relacionado com a percepção da Contribuição de Segurança Rodoviária que tanto amarguraram a vida de Almerindo Marques quando geriu as Estradas de Portugal
  2. as relacionadas com a não liquidação de IVA  numa prestação de serviços de saúde a cidadãos líbios, que levou a imputações de perdão fiscal e tráfico de influências conexas com protagonistas do processo dos Vistos Gold, imputações de que nunca mais se ouviu falar
  3. o alegado perdão à Brisa da tributação em mais valias alegadamente devidas pela alienação de uma participada brasileira.

No que se refere à actuação da inspecção tributária recordo o entusiasmo com que foi recebida a “luminosa” ideia do Secretário de Estado Oliveira Costa de isentar de fiscalização os contribuintes que de um ano para outro melhorassem os resultados declarados, a imputação a este Secretário de Estado também presidente de uma comissão política distrital de uma tendência para a gestão política das liquidações, e a progressiva degradação da operacionalidade dos  serviços a que se assistiu nos anos finais do ciclo de Cavaco Silva.

Mesmo nos períodos em que esta operacionalidade pareceu adquirida, e em que a inspecção produziu  um grande volume de liquidações oficiosas ou  correctivas, é possível verificar  que:

  • a concentração de acções inspectivas às empresas no final dos prazos de caducidade do direito à liquidação, serve essencialmente para as estatísticas,  uma vez que uma mesma acção, que pode nem envolver uma deslocação à empresa mas apenas uma convocação para mostrar a contabilidade nos serviços da Administração Tributária, permite multiplicar relatórios de inspecção (um por cada ano e por imposto devido);
  • há, por esta via, casos de liquidações efectuadas, com valores fundamentados em falta de elementos,  quando a empresa já mudou para parte incerta ou mesmo entrou em insolvência, sendo todavia estes valores certamente incobráveis, levados, para efeitos estatísticos, a crédito da “produção” da inspecção tributária;
  • nos casos restantes a  informação colhida em sede de inspecção tributária sobre a empresa não ajuda de modo geral a preparar a intervenção dos serviços de  cobrança no âmbito da constituição de garantias, aliás, sendo cada vez mais comum a criação de empresas que não operam com base em instalações e equipamentos próprios, o modelo tradicional de recuperação de receita a partir de processos de execução fiscal está desde há muito posto em causa.

Noutro ângulo, é de assinalar que uma boa parte das liquidações correctivas produzidas pela inspecção tributária são anuladas pelos tribunais competentes, tanto judiciais como arbitrais.

A área da liquidação é assim uma área subordinada à lei, mas a orientação da sua actividade comporta necessariamente um esforço de gestão, que modernamente e bem, se tem deixado aos dirigentes da Administração Tributária, e exige uma permanente avaliação.

Cobrança coerciva

Uma vez fixado por lei o montante devido por cada entidade a título de imposto, parece que seria normal exigir que este fosse pago, mas ai que por aí nos “afundamos no lamaçal do pequeno trejeito fascistoide”.

Di-lo, com invocação do 25 de Abril, num esplendoroso artigo publicado no Observador, uma tal “Daniela Antão. Mãe. Advogada. Autora. Candidata à Eleições Europeias em 4º lugar pela Aliança. Directora do Gabinete de Estudos Nacional da Aliança. Portuguesa.:

Todos os funcionários da AT têm interesse nos procedimentos de liquidação e cobrança de imposto: quanto mais cobrarem, maior será o seu prémio anual. Se recebem um prémio  financeiro indexado ao resultado da maior cobrança, devem pedir escusa, por imposição do Código do Procedimento Administrativo (e da Constituição da República, já agora), sob pena de invalidade do ato administrativo final. Ah não pediram? Então está tudo viciado.

Este tipo de discurso reedita, talvez sem que a distinta advogada aliancista disso tenha consciência, o tipo de argumentação desenvolvido pelo Partido do Progresso no pós – 25 de Abril procurando falar de Abril para minar Abril. E, como todas as atoardas que vêm destes sectores, assenta numa mistificação básica: diz  que os funcionários envolvidos têm interesse na liquidação e cobrança do imposto, quando o prémio anual tem apenas como referência o montante, legalmente liquidado, arrecadado em sede de cobrança coerciva. Aliás, estando o imposto legalmente liquidado, o juízo que basicamente se pede à Administração é sobretudo de oportunidade e a actuação que se requer privilegia a celeridade e o desembaraço dos agentes.

Embora a minha visão do que deveria ser o esforço de cobrança seja um pouco diferente, não posso negar que o ordenamento laboral da nossa Administração Pública permite atribuir prémios por resultados obtidos, e anoto também que o sistema de avaliação de desempenho desenhado para a Administração Tributária dá relevo à participação num esforço colectivo. A criatividade individual é que vendo cada vez mais restringida, como se viu no caso do Director de Finanças que montou nas auto-estradas da sua área um esquema para dévaliser os contribuintes relapsos.

É aliás interessante perceber como se chegou à criação dos Fundos de Estabilização Aduaneira e Tributária. Uma Comissão para a Reforma do Sistema Retributivo presidida por António de Sousa Franco e a que pertenciam entre outros, Isabel Corte Real e Manuela Ferreira Leite apresentou em 1987 um Relatório que defendia a extinção de remunerações acessórias processadas exclusivamente em função da pertença a um certo ministério. Isabel Corte Real conseguiu implementar este princípio em 1989 mas o Governo, que enfrentou nas alfândegas e no ensino superior processos de contestação difíceis de controlar, teve de aceitar em 1990 a criação de um Fundo de Estabilização Aduaneira, o que forneceu um argumento a António Carlos dos Santos, Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, para fazer o então Ministro Sousa Franco aceitar em 1997 a criação paralela de um Fundo de Estabilização Tributária, ultrapassando a orientação que patrocinara 10 anos antes. Todos os governos subsequentes, de direita ou de esquerda, mantiveram / reforçaram os Fundos, que foram fundidos em 2017.

Neste contexto, como é possível que a catilinária da advogada – candidata da Aliança ao Parlamento Europeu vise com toda a deselegância o Ministro e Professor Catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa, que também foi Presidente do Tribunal de Contas, António de Sousa Franco, que, falecido, não se pode defender: “A Autoridade Tributária portuguesa também administra a Lei Fiscal no interesse próprio. Desde que um certo ministro das Finanças, que de Direito e de Legalidade não saberia muito, nem se informou, ou ninguém lhe disse, ou disse mas ele não ouviu, e poderia   teve a ideia peregrina de atribuir prémios financeiros de desempenho aos funcionários da AT pelo volume de cobranças? Parece-me que tal se deve justamente à memória de que foi Sousa Franco que conseguiu reorganizar o Ministério das Finanças e devolver-lhe um sentido de missão.

Não contra os aliancistas, que ainda não existiam, mas contra toda uma série de gente, incluindo socialistas e mesmo colegas de Governo, que reiteradamente foram desenvolvendo actuações conducentes a paralisar o esforço de cobrança.

 Mantive na altura dezenas de reuniões com devedores que vinham ao Gabinete de Coordenação para a Recuperação de Empresas (GACRE), onde representei o Ministério das Finanças, exigir a negociação de dívidas fiscais e foi-me grato entregar em cada uma destas reuniões um recorte de imprensa em que o Ministro explicava que as dívidas fiscais são dívidas de cidadania e não dívidas de mercearia.

E são.

 

Diferentes sectores da Administração Fiscal foram emitindo opiniões diferentes sobre o assunto, que infelizmente não posso reproduzir aqui.

Sem que esta inflação estatística se reflicta nos valores de referência do Fundo de Estabilização Tributária, para o qual relevam os montantes  de cobrança coerciva e não os de liquidação, portanto tal inflação estatística é imputável a um esforço de marketing interno e externo, e não a um interesse financeiro .

O episódio da fiscalização tributária anunciada para os casamentos é neste contexto um fait divers, mostrando a reacção do Governo que a proibiu um natural receio das repercussões em ano eleitoral. No entanto, pedir espírito de iniciativa e imaginação aos serviços distritais e locais e cercear estas manifestações descredibiliza a gestão.

O 25 de Abril ainda. Porque a promessa da Democracia não está cumprida, publicado em 2 de Maio de 2019.

 Pedro Santana Lopes, Presidente e farol da Aliança não veio, é certo, do Partido do Progresso, que foi extinto, mas do Movimento Independente para a Reconstrução Nacional (MIRN) do general Kaulza de Arriaga.

Ver história dos Fundos de Estabilização Aduaneira e Tributária no Decreto-Lei nº 113/2017, de 9 de Julho  (Procede à fusão do Fundo de Estabilização Aduaneiro no Fundo de Estabilização Tributário).


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