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Sábado, Dezembro 21, 2024

Ser socialista não é isto

Vasco Graça
Vasco Graça
Professor. Foi fundador e secretário nacional da FENPROF. Foi diretor adjunto do Departamento da Educação Básica do M.E. Foi deputado municipal do Partido Socialista na Assembleia Municipal de Cascais.

Faltam na política portuguesa Ideias claras servidas por palavras simples em vez da habitual retórica enrolada em que as ambiguidades e os ‘soundbites’ servem para ludibriar consensos e facilitar enganos.Mas escasseia também, e muito, o cumprimento da palavra dada e o respeito pelos princípios proclamados.

Dessas carências que alimentam-se o populismo e o reacionarismo larvares.

Quando o meu amigo João Semedo morreu (Julho de 2018) escrevi algures, em jeito de despedida a propósito da sua ultima batalha pela salvação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), «a luta continua e prosseguiremos determinados neste combate». Obriguei-me então a não me calar e por isso não confundo os objectivos necessários com o ‘possibilitismo’ claudicante que, provavelmente com boas intenções, parece estar a emergir entre algumas personalidades.

Estamos nos últimos dias em que, na Assembleia da Republica, se debate o que será o futuro da saúde em Portugal.

Discute-se, ainda, a possibilidade de haver ou não uma nova Lei de Bases da Saúde que inverta o rumo de degradação do SNS resultante da Lei que o PSD/CDS impôs em 1990.

As esquerdas têm a oportunidade de contribuir positivamente para garantir aos cidadãos a liberdade de confiarem numa vida saudável sem a ameaça de serem excluídos desse direito essencial pelo negocismo dos grandes grupos privados do sector.

Pelo que se conhece a possibilidade de as esquerdas corresponderem ao que delas se esperaria foi bloqueada quando o Grupo Parlamentar do PS, num aparente recuo face ao que o próprio Governo tinha antes proposto, se erigiu no irredutível defensor das Parceria Público Privadas (as célebres PPPs) na saúde.

Em nome de uma pretensa sensibilidade para com o sentir de Marcelo Rebelo de Sousa o Grupo Parlamentar do PS (GP-PS) defende agora, a todo o custo, que a gestão dos serviços públicos da saúde continue a poder ser entregue a grupos privados. Nem os recentes escândalos com as PPPs de Cascais e de Vila Franca de Xira parecem ter facilitado ao Grupo Parlamentar do PS a lucidez suficiente para preservar o entendimento das esquerdas para uma nova Lei de Bases da Saúde.

É neste quadro e neste tempo que importa ser claro. Duas ideias recentemente postas a circular podem servir para facilitar a deriva neoliberal do GP-PS mas não correspondem à verdade nem podem permanecer no diáfano manto da fantasia que as enforma.

A primeira é a de confundir as PPPs com a contratualização de serviços com os privados. Obviamente que ninguém defende o fim do papel do sector privado na saúde e todos os Partidos prevêem que o Estado possa contratualizar serviços com os sectores privado e social. Isso pode ser útil em áreas onde o Estado tem carências e onde o sector privado tem a possibilidade de ser supletivo.

Coisa totalmente diferente é entregar a gestão de estabelecimentos públicos aos grandes grupos privados (parte dos quais estrangeiros). Fazê-lo é não apenas perverter a lógica de funcionamento do serviço público de saúde, conforme os recentes escândalos de Cascais e Vila Franca de Xira tão claramente ilustram, como significa continuar a acarinhar um dos mais escandalosos (nalguns casos a roçar a existência de crimes em investigação) atentados à economia nacional.

Abrir aporta da gestão dos estabelecimentos públicos aos interesses privados é estender a passadeira para a destruição do SNS. É fazer com a saúde dos portugueses, onde os grandes grupos ganharam um poder imenso, aquilo que felizmente (ainda?) é impensável noutros domínios. Não se conhece quem defenda que a gestão das Câmaras possa ser entregue a grupos privados especializados, que a gestão dos Agrupamentos Escolares seja concessionada a grandes colégios ou que as esquadras da PSP passem a ser geridas por empresas de segurança privadas.

A segunda falsa ideia posta a circular nos últimos dias é a de que António Arnaut não seria contra as PPPs. Mentira!

As PPPs não existiam na Lei do SNS de 1979 nem o projecto que Arnaut e Semedo nos legaram lhes abria as portas. Mais António Arnaut sempre foi claro em esconjurar a gestão privada dos estabelecimentos públicos de saúde. Em Abril de 2018 numa mensagem que divulgou escrevia «a grande e principal motivação política desta proposta é fazer regressar o SNS aos seus valores e princípios fundadores e constitucionais, a saber: direito à saúde para todos e assegurado pelo Estado através do Serviço Nacional de Saúde. Um SNS universal, geral e gratuito, de gestão integralmente pública (…)»

De gestão INTEGRALMENTE pública!

Ele, que foi Presidente do Partido Socialista e um referencial ético do Partido, sabia bem do que falava e o que defendia. As PPPs estavam nos antípodas do seu projecto e ele nunca escondeu que não se tratava aqui de um pormenor mas antes de uma questão central.

O GP-PS sabe seguramente bem por que razão está a inviabilizar o entendimento das esquerdas para defender a promiscuidade dos grande grupos privados na gestão do sector público.

António Costa saberá se tal justifica que desonre, com isso, a palavra que deu a António Arnaut na véspera da sua morte de que iria defender o SNS.

Mas a nós que acreditamos na democracia e num futuro mais justo resta-nos a liberdade de dizer com clareza que a posição do GP-PS não é compaginável nem com aquilo que o PS sempre defendeu em matéria de Lei de Bases da Saúde nem com os mais elementares princípios da social democracia e do Estado Social.

Não sei se o BE e o PCP irão ceder à chantagem e à campanha intimidatória que o GP-PS está a desenvolver mas sei, sem margem para dúvida, que ser socialista não é isto.


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