A propósito de 45 Anos e do seu prémio de carreira
“Ficaria atormentada se não me sentisse agora muito zen”
Charlotte Rampling venceria o prémio de Melhor Actriz Europeia de 2015 pouco depois da nossa conversa e receberia ainda o prémio de carreira. A oportunidade surgiu durante o momento que concedeu à imprensa internacional durante os Prémios do Cinema Europeu, numa oportunidade também para trocar algumas impressões sobre o magnífico 45 Anos, de Andrew Haigh, em que compõe com Tom Courtenay um casal prestes a celebrar 45 anos de casados mas que é sobressaltado por uma dúvida que ficara enterrada no passado.
Miss Rampling é, na verdade, a derradeira actriz europeia. Nascida em Gibraltar, acabaria por dividir a sua vida (e carreira) entre a França, Itália e Espanha, tornando-se rapidamente numa actriz multifacetada. Um talento que haveria de ser moldado por cineastas tão diversos como Liliana Cavani (O Porteiro da Noite), Woody Allen (Recordações), François Ozon (A Piscina), Laurent Cantet (Para o Sul), Sidney Lumet (O Veredicto), Bille August (O Comboio Nocturno Para Lisboa), Lars von Trier (Melancolia). Curiosamente, apesar do seu lado muito british, ficou menos marcada pelo cinema britânico (a excepção mais recente foi I, Anna, quando foi dirigida pelo seu filho Barnaby Southcombe, em 2012), razão pela qual este trabalho com Andrew Haigh reponha um pouco essa verdade.
Falar com Rampling é como penetrar nesse mundo cosmopolita. Isto apesar da sua postura não usar quaisquer véus imaginários. Charlotte mostra-se como é. Imperial, com o seu olhar do qual não ousamos desviar a atenção. Naturalmente, no final cada um de nós seguirá o seu caminho. Mas o momento ficará.
Parabéns por este filme magnífico. Tivemos oportunidade de o descobrir no Festival de Berlim, onde a Charlotte e o Tom (Courtenay) ganharam ambos os prémios de interpretação pelo vosso trabalho em 45 Anos. Não deixa de ser curioso, por isso mesmo, ser de novo em Berlim que recebe uma nova distinção. Curiosamente, uma cidade em que o seu pai ganhou uma medalha nos Jogos Olímpicos de 1936 , há precisamente 80 anos. Acha que a cidade tem uma espécie de amuleto para si?
Obrigado, ainda bem que gostou. Pois é, acho que sim. Absolutamente. São esses sentidos e maravilhas que tornam a nossa vida em algo que vale a pena viver. Algo que nos permite ficar ligados com o universo. Tem de ter algum significado. Adoro!
Sente que de certa forma, este filme a fez pensar também nas suas próprias emoções, na sua vida, nos seus romances?
Sim, claro, isso é algo que sucede sempre. Pelo menos é o que me sucede a mim porque eu sou esta pessoa, mas também aquela que se vê também no ecrã. Não sou outra pessoa. Por isso, necessariamente, algo de mim está sempre presente. Posso é tentar fazer com que não se perceba que sou eu, mas no fundo a minha essência está sempre presente. É a viagem da minha alma. É assim também com as outras personagens. Somos todos únicos, mas também diferentes. Preciso de sentir alguma interioridade para fazer este tipo de profissão.
O que foi que descobriu neste filme?
Não se descobrem coisas novas, mas aquelas que nos permitem seguir em frente. Estou sempre à procura de coisas que não me façam sentir isso, que me possa surpreender. As almas que habitam os nossos papéis, somos nós. Não que vamos viver essas vidas, mas poder fazer acreditar que somos aquelas pessoas. Torna-se pessoal aquilo que queremos aproveitar, seleccionar. A forma como usamos a beleza.
Lembra-se do momento em que decidiu iniciar a sua carreira?
Lembro-me bem, até porque fui escolhida, não se deveu tanto à minha decisão. Nunca tive a necessidade de fazer castings, por isso nunca fui rejeitada; de certa forma tive muita sorte, pois não tive de subir aquela escada, percebe?
Sente que este é um dos seus filmes mais pessoais? Em que filmes sentiu mais forte esse elemento de proximidade consigo própria?
Por exemplo, Sob a Areia (2000) é um filme muito íntimo, tal como O Porteiro da Noite (1974), mas muitos deles são igualmente muito pessoais. Para o Sul (2005) é um filme muito pessoal, tal como, evidentemente, 45 Anos. Nem todas, mas muitas das personagens que interpretei têm uma parte dessa intimidade. É isso que me interessa. É isso que me torna na actriz que eu sou. É isso que transparece nesses papeis.
Normalmente diz-se que a Charlotte é a derradeira actriz europeia. Quando está num filme como 45 Anos sente-se mais uma actriz britânica do que europeia?
Eu sinto-me sempre muito à vontade. Mas não é aí que eu quero realmente estar. O que eu quero é estar de volta a esse lado britânico que é muito meu. De certa forma, acho que vivi uma vida muito semelhante à de Kate. Sem dúvida. Mas não queria estar no seu papel.
No fundo, ela procura a rotina que a Charlotte tenta evitar…
É isso mesmo. É através da não rotina que eu vivo. Todos esses tipos de vida em que eu mergulho, mas quero também estar fora dali.
Mas quando se diz que é uma actriz europeia, o que significa isso para si? De que forma se sente europeia e não britânica ou de outra nacionalidade qualquer?
É algo em que eu pensei há muito tempo, mas que não sei se cheguei a precisar de forma definitiva. Eu comecei muito cedo no cinema britânico, depois fui para Hollywood durante um período de tempo; voltei nos meus 20 anos e fui em seguida para Itália. E foi aí que eu percebi que alguma coisa se estava a passar de novo no cinema europeu. E foi aí que percebi que queria fazer parte de um verdadeiro continente de cinema, com diversas línguas, estilos, culturas e modos de vida. Foi nessa altura que percebi que queria fazer parte dessa raça de pessoas que procuram isso.
O prémio de interpretação que partilhou com o Tom (Courtenay) em Berlim. Acha que este é daqueles filmes em que um papel vive paredes meias com o outro?
Nunca se sabe. Tivemos o casting que queríamos. Quando eu aceitei o papel o Tom ainda não estava presente. Inicialmente, o Andrew escolheu uma outra pessoa, mas eu não estava segura de que seria uma boa escolha. Mas quando ele mencionou o Tom, percebi logo que seria uma escolha acertada. Tal como ele. E o Tom tornou-se no Geoff Mercer (a sua personagem) naquele momento. Se o Tom não estivesse disponível, não sei como teria sido. É algo que não poderemos falar porque não sabemos.
Sente que faltam mais papéis como estes? Receia que possam não voltar tão depressa?
Não sinto isso. Porque se sentisse, seria realmente esquecida. Mas quando não se sente isso, um dia alguém acabará por nos encontrar. Digo isto porque me aconteceu toda a minha vida – as pessoas encontraram-me.
Parece ter uma atitude muito zen com a sua carreira e com o que lhe poderá acontecer, mas quando era mais nova imagino que não fosse assim. Tem alguma razão especial?
Não é calma, é algo que está a acontecer comigo, algo que não podemos evitar ou recusar. Poderia ter tido muitas vidas diferentes. Nesse sentido tive muita sorte. Mas ficaria atormentada se não me sentisse agora muito zen.
Quando pensamos na cultura popular, os anos 60 em Londres aparecem sempre como referência. Ora a Charlotte viveu isso com alguma intensidade. Como sentiu esse período?
Era aquilo que conhecia. Eu tinha 18 anos e era o que estava a acontecer. Não tínhamos outras referências, ao contrário do que sucede hoje em dia. E em diferentes décadas depois dessa. É claro que tínhamos os anos 40 e os 50. Eu adoro os anos 50, em que existia um sistema de estrelas muito vincado.
Mas a verdade é que desde os anos 60 nunca mais tivemos essa década tão vincada…
Correto. Mas como era novo não tínhamos comparação e então vivíamos. Gostávamos porque era novo, mas provavelmente não sabíamos sequer que era tão bom. Como andávamos com os Beatles e com os Stones e com todos os outros, hoje as pessoas ficam muito admiradas, mas na altura era tudo muito natural, pois eramos todos da mesma geração.
Acha que esse tempo nos anos 60 é hoje usado de forma algo exagerada?
Acho que não poderemos dizer isso, simplesmente porque as pessoas gostam de medir as coisas. Eu apenas digo isso porque o vivi. Não é o meu ponto de vista que está sobrevalorizado, é mais aquilo que as pessoas acham que foi.
Sente que o mesmo se passava com o cinema dessa altura? Sente essas mesmas diferenças?
Era um cinema muito fresco em que se mostrava mesmo como viviam as pessoas, ao contrário do cinema decorativo dos anos 50. É claro que os franceses estavam um pouco avançados com a nouvele vague. A ideia era pegar numa câmara e começar a filmar. Algo que dava muito potencial.
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