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Sábado, Dezembro 21, 2024

A Ciência e o pensamento crítico: da era industrial à pós-industrial

O matemático Ricardo Angelo Monteiro Canale (IME-USP) defende que a construção da Ciência pode servir para o desenvolvimento do pensamento crítico e da humanidade – mas também para o processo de dominação social. “É necessário se repensar o desenvolvimento científico e a comunicação entre as ciências, tendo um olhar ao progresso da humanidade”, sustenta Ricardo.

Confira abaixo o texto.

Construções do pensamento científico e das práticas científicas nas eras industrial e pós-industrial

por Ricardo Angelo Monteiro Canale

 

Desde os primórdios da Ciência, o debate sobre a forma do desenvolvimento científico e de se pensar Ciência é intenso. Muito já foi feito a respeito para trazer uma compreensão mais clara de como isso se dá diante da realidade que, conforme Stenger[1], é um dos limites possíveis para a Ciência.

Culturalmente, costuma-se separar e classificar as coisas em dois grandes blocos – e com a comunidade científica também não é diferente. No final da era industrial, surgem duas grandes correntes lógicas de pensamento que influenciaram o pensamento científico e o seu desenvolvimento: a positivista e a antipositivista[2].

Apesar de serem correntes de pensamento distintas, há um fator em comum entre elas: a ideia de padronizar as Ciências e sua transformação em etapas e formas preestabelecidas (como se fossem regras impostas), separando também os diferentes grupos científicos, sejam eles teóricos, experimentais ou mesmo instrumentalistas.

Necessidade de se repensar a forma de fazer e praticar a Ciência: novos modelos

A Ciência — em especial as Factuais ou Experimentais (a exemplo da Física, Química e Biologia) e as Formais (como a Matemática e a Lógica) — não nasceu como algo homogêneo. Ainda é praxe fazer a divisão cultural da Ciência em dois grandes blocos: Naturais e Humanas.

A desunião desses blocos faz com que a Ciência se desestabilize, gerando lacunas comunicativas e de troca entre as mais diferentes áreas, tendo como consequência a “desregulação” do desenvolvimento científico. Estas concepções vão de encontro com as duas maiores correntes da era pós-industrial, que influenciaram e se firmaram na forma de se fazer ciência: a lógica positivista e o antipositivista (ou “pós-positivismo”).

A lógica positivista, ou simplesmente positivismo[3], é considerada a primeira grande proposta contemporânea para base de reflexões filosóficas e científicas. Concebida por Auguste Comte, tem por pressuposto a padronização entre as ciências e a constituição de um modelo rígido/imutável de leis e etapas pré-definidas para fazer Ciência, passando das bases observacionais para a teoria, seguido pela experimentação laboratorial e depois para a instrumentação. Não há espaço para qualquer movimentação entre as etapas, independentemente da necessidade de momento.

Além disso, o positivismo tenta explicar a necessidade da unidade científica, tendo como direcionamento as bases observacionais. Tais propostas podem gerar um tipo de “freio” ao desenvolvimento científico, pois dificultam a comunicação entre diferentes áreas e práticas científicas, impossibilitando melhores zonas de troca para ampliar o campo de atuação científica. Implica também uma simplificação da teoria para a experimentação e da experimentação para instrumentação.

Alguns filósofos da Ciência – como Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Peter Galison – mostram que há mudanças e movimentações entre as teorias e as experiências, não havendo ordem correta e fixa das coisas, que variam conforme a necessidade de análise. Em outras palavras, cada prática ou área da Ciência, teórica, experimental ou instrumentalista, possui características próprias, mudando de acordo com as necessidades e contextos.

Já o antipositivismo – que surge contrariando os paradigmas científicos da lógica positivista – traz o conceito de que a desunião das Ciências causa instabilidade, não havendo protocolo fixo entre as linguagens da teoria e do experimento na Ciência. Mas há uma falha dentro do antipositivismo ao reinterpretar a grande valorização das concepções teóricas e rejeitar o empirismo, que é marco da Filosofia da Ciência como disciplina acadêmica de valor filosófico e histórico.

Tanto no positivismo quanto no antipositivismo, não se nota a necessidade da interação entre as diferentes áreas e práticas científicas, como demonstram as recentes literaturas científicas, que trazem consigo a ideia das experimentações para além de colher dados e/ou confirmar (ou refutar) alguma teoria. Fazer essas separações ou então enrijecer os sistemas práticos na Ciência torna-se uma forma de refrear o conhecimento científico.

Como exemplos da importância de haver “maleabilidade” entre as diferentes práticas científicas, zonas de trocas e redução dos protocolos de linguagem[4], têm-se: a descoberta dos elétrons, prótons e nêutrons, além de suas ligações eletromagnéticas, em que se fez um esforço considerável entre as áreas da Física de partículas, a Matemática e a Química inorgânica; e o caso do projeto da Bletchley Park, no Reino Unido, para a quebra do código criptográfico da máquina alemã Enigma durante a 2ª Guerra Mundial, que “obrigou” matemáticos, militares e engenheiros a trabalharem juntos no mesmo local, fazendo a transição entre teorias e práticas.

Cena do filme O Jogo da Imitação, baseado na história do projeto da Bletchley Park

Ao analisarmos os fatos exibidos até agora, nota-se a necessidade de elaborar uma nova maneira de pensar em Ciência, com maior amplitude e “plasticidade” entre as áreas e redução dos problemas de linguagem entre elas. Nesse sentido, há uma proposta de Peter Galison[5] a ser considerada: ele propõe um novo modelo fundamentado nos conceitos de “coordenação local” (conceito desenvolvido por Galison para explicar o que ocorre, em particular, com cada comunidade e práticas científicas), que possibilita a troca de informações e conhecimento entre as diferentes práticas, conforme as necessidades e contextos vigentes.

Para isso, Galison explica as diferenças entre as práticas teóricas, experimentais e instrumentalistas, denominando-as como “subculturas” (termo da Antropologia) da sua própria cultura. Também explica as conjecturas que tornam a necessidade de interlocuções e conexões dessas para uma melhor forma de poder conceber o pensamento científico. Galison considera tais conceitos como uma “zona de troca”, e elas ocorrem devido às condições de forças ideológica e local.

Segundo Galison, um processo “coordenativo local” se faz por interceptação dessas “zonas de troca”, que possibilitam a interligação e interlocução entre determinados objetos de conhecimento e necessidades. Para tanto, um exemplo trazido por ele é sobre o Rad Lab (Laboratório de Radiação, do Massachusetts Institute of Technology – MIT), que foi um laboratório privado para estudo e fabricação de radares de micro-ondas (do espectro eletromagnético) e também para elaboração de estratégias de guerra. Em função das condições da 2ª Guerra Mundial, físicos e engenheiros foram obrigados a trabalharem juntos, no mesmo local, fazendo transições entre teorias e práticas distintas entre si.

A importância do conhecimento científico e a valorização das diferentes práticas científicas como instrumento de desenvolvimento estatal e de dominação

Na era pós-industrial, há diversas formas de pensar e fazer Ciência. Contudo, como diziam Foucault, Gramsci e Pestre, a detenção do conhecimento e sua má utilização podem servir como forma de dominação de um povo.

O debate sobre o papel social da Ciência e da prática científica com o mundo político – sobretudo com as políticas de Estado e de mercado –, à luz da ética da civilização tecnológica, é decorrente desde a introdução das sociedades industriais. Todavia, isso nunca teve um tratamento adequado como ocorre ultimamente. De acordo com Pestre[6], observa-se que há quatro tendências dominantes sobre prática científica e a política, sendo elas: a) a ciência como sistema de conhecimento e tendências para produção de desenvolvimentos disciplinares e de conceitos; b) a ciência como sistema de práticas técnicas; c) a interface científica e a intersecção dela com questões relacionadas com as políticas públicas; e d) a relação da ciência com o militarismo, especialmente as relacionadas com os contextos das guerras do século 20.

Essas tendências serviram como base nas relações entre os modelos de produção e divulgação científicas com os aspectos e interesses políticos envolventes. a exemplo do que mostra Pestre, houve a a subordinação das universidades com as políticas de interesse estatais (caso da Ecolè Polytechnique, de Paris, e da Physikalische Technische Reichanstallt, em Berlim, dada a importância de suas pesquisas no desenvolvimento de seus respectivos países); a transformação das pesquisas e dos meios de divulgação científica em negócios; a função das ciências dentro das indústrias e do âmbito social (como a construção da bomba atômica na 2ª Guerra Mundial, o fator reducionista em torno da Biomedicina e o uso da Estatística para análise de dados em benefício da ideologia hegemônica); e as tentativas de retirar a neutralidade da Ciência, que serve como forma de refrear, em parte, o progresso científico.

A Ciência, de acordo com o que pôde ser até então, pode ser considerada como uma variável condicionante para além da abordagem contemporânea – e a forma de desenvolvimento dela aplicada à produção tem sua devida importância na História. Tudo isso demonstra como os contextos e as dimensões da vida política e da construção social não podem ser separados dos contextos que rondam os objetivos aos quais se põem em prática a Ciência em relação ao Estado e à ideologia hegemônica.

No decorrer da história, foi possível perceber como as interconexões de áreas (em especial o uso de laboratórios especializados) serviram para o desenvolvimento de diversos Estados e nações. Nesse sentido, pode-se fazer uma análise, por exemplo, sobre o início do período ditatorial do Estado Novo português[7] e das políticas aplicadas em suas colônias.

De acordo com Saraiva[8], para que esse regime tivesse estabilidade, foram desenvolvidas políticas no setor produtivo agrícola, com a finalidade de converter o território português em uma produtiva máquina tradicionalista que dependesse do cultivo da terra como fonte de toda a virtude nacional. O autor traz como exemplo a reformulação da Estação Experimental Agrícola Nacional, do Ministério da Agricultura, classificando-a como um dos principais órgãos para a gerência do Estado, até mesmo mudando sua forma arquitetônica. Sem contar os laboratórios de bem como a criação das campanhas nacionais da produção de trigo e tremoço, principais produtos de cultivo e exportação de época.

Nesse período, houve enfoque nos trabalhos dentro dos laboratórios em conjunto com os processos teóricos e instrumentais para criação de novas políticas públicas de Estado. A forma de compreender a paisagem em mudança em Portugal tornou-se mais eficaz, interagindo com o meio ao redor, na intenção de gerar uma autossuficiência produtiva. Isso permitia um controle sobre as terras e a mão de obra local – que, infelizmente, não detinha muito conhecimento técnico de toda a paisagem e seus elementos, dando aos engenheiros e cientistas portugueses e europeus um papel importante no desenvolvimento do Estado e do regime vigente em Portugal.

Até aqui, pôde-se perceber que, conforme se faz e se pensa Ciência, esta pode servir tanto como um meio de avanço, de superação de paradigmas e libertação de conhecimento, quanto como forma de dominação e controle de um povo. Com base nisso, pode-se também falar a respeito do papel da divulgação científica nos meios populares, tendo sob ótica a influência da ideologia hegemônica e da falta de incentivo à alfabetização científica de maneira pedagógica, popular e libertadora.

Um dos pressupostos da divulgação científica é a popularização da Ciência e a geração de pensamento crítico. Ou então, quando divulgado de maneira popular, como o caso da descoberta do Bóson de Higgs (rotulado erroneamente de “partícula de Deus”), há a aplicação não adequada de termos e conceitos devido à dificuldade da alfabetização científica popular e também da participação ativa de revisão científica dentro dos meios de comunicação de massas.

De maneira geral, o que se tem costume de divulgar sobre ciência na grande mídia são as maiores tendências para ganho de adeptos, a exemplo de coisas práticas no dia a dia, ficção científica ou sobre algum fato que diz respeito aos astros. Cite-se a conjunção planetária Vênus-Júpiter, ocorrido em 30 de junho de 2015, que é um fenômeno raro de ocorrer. Não houve quase nenhuma divulgação nos meios de comunicação de maior impacto.

Outro exemplo nesse sentido é a erradicação total da transmissão vertical do HIV em Cuba, no ano de 2015, conforme dados oficiais da Organização Mundial da Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde. Devido ao boicote político e econômico à Ilha, houve pouca divulgação do fato.

Selo cubano lançado no cinquentenário da Revolução de 1959: foco nas conquistas em saúde pública

Em vez disso, ao menos na mídia brasileira, dá-se maior respaldo ao que envolve pequenos fatores práticos para o bem-estar, como parte de estética e de pequenos cuidados na saúde pessoal, a exemplo do fato de se lavarem as mãos ou então sobre algum produto inovador no mercado para peles ressecadas.

“Novos” rumos para a Ciência: retomada ao gosto do saber pelo saber

No decorrer da História, observa-se que a Ciência tem um importante papel para o desenvolvimento e aprendizado da Humanidade. É necessário repensar o desenvolvimento científico e a comunicação entre as ciências, tendo um olhar ao progresso da humanidade. Além disso, há a necessidade da manutenção da neutralidade científica e da independência das pesquisas, tendo por finalidade o progresso intelectual, a liberdade dos indivíduos e o avanço social.

Para tanto, é necessário implantar trabalhos na área de alfabetização científica, com a finalidade de promover o saber crítico e possibilitar observar que a Ciência não é apenas um monte de ideias jogadas ao vento, descobertas de mentes mirabolantes. Uma adequada divulgação científica e a transposição de conhecimento de maneira concisa podem trazer bons frutos ao desenvolvimento social e pessoal, servindo como meio de libertação e união dos indivíduos. Caso contrário, produzirá brechas para dominação e fortalecimento de regimes de déspotas, como foi durante o Estado Novo português.

 

[1] Vide STENGER, V. J. God: The Failed Hypothesis – How Science Shows That God Does Not Exist. 1. ed. Amherst: Prometheus Book, 2007. 294 p.

[2] Este ainda é um termo discutido dentro da Filosofia. Há um embate de ideias em torno dos racionalistas e dos pós-modernos sobre a utilização do termo antipositivismo como linha contrária aos paradigmas positivistas.

[3] Como curiosidade: o positivismo serviu como fonte para as ideias de formação republicana brasileira, por influência do militar, engenheiro e político Benjamin Constant, sendo o lema “Ordem e Progresso”, da bandeira brasileira, baseado nesta linha de pensamento.

[4] Como observação: isso é algo complexo dentro das Ciências Factuais. Por exemplo, o conceito de “energia” em Física é diferente do considerado em Química. No primeiro, é a capacidade de transformar força em trabalho. Já no segundo, é a atração das ligações químicas entre os átomos.

[5] Vide GALISON, P. Trading zones. Coordinating action and belief, in Mario Biagioli, ed., The Science Studies Reader. London: Routledge, 1990, pp 137-160. Acessado em: 28 abr. 2018.

[6] Vide PESTRE, D. Science, Political Power and the State, in KRIGE, John; PESTRE, Dominique (Eds.), Science in the Twentieth Century. Amsterdam: Harwood Academic Publishers, 1997. pp. 61-65.

[7] Conforme a professora Doutora Ana Simões, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Portugal nunca esteve em destaque nas comunidades internacionais científicas. Portugal vem tentando desenvolver trabalhos de qualidade na área, bem assim como de produção historiográfica, com a finalidade de se colocar como um país de centro de desenvolvimento científico e como nação de produção científica de fato, sobretudo na Europa.

[8] SARAIVA, T. Laboratories and Landscapes: The Colonization of Portugal and Mozambique in the Twentieth Century. Journal of History of Science and Technology (HoST), vol. 3, 2009, pp. 7-39.


por Ricardo Angelo Monteiro Canale, Mestrando pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Matemática pelo IME-USP (Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo). É matemático licenciado também pelo IME-USP, com graduação sanduíche em Matemática pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa  | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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