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Sábado, Dezembro 21, 2024

Por que Chico Buarque, aos 75 anos, incomoda tanto os conservadores?

Chico Buarque completa 75 anos nesta quarta-feira (19) e, em 2019, comemora 55 anos de carreira na música popular brasileira (MPB). Seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), preferia que ele fosse escritor, o que Chico só se tornou anos após a morte do pai. Desde o primeiro cachê, em 1964, o compositor, cantor, dramaturgo e escritor definiu um caminho a seguir ao qual se mantém fiel em toda sua trajetória.Seu primeiro grande sucesso foi A Banda, vencedora do Festival da Record (que ainda não pertencia à Igreja Universal) de 1966. Com cara de bom moço, assistia a banda passar cantando coisas de amor num canto lírico e sonhador, já em prenúncio do artista transgressor que se afigurava.

No ano seguinte, porém, mostrava a sua cara mais firme contra a mentalidade autoritária com peça Roda Viva, atacada pelo Comando de Caça aos Comunistas. O autor carioca mostrava a que se propunha já no início de uma trajetória ímpar na cultura brasileira.

Ao defender que a MPB carrega em si mesma o cerne da mudança, disse nos anos 1960 que “nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha”. Frase confirmada quando se vê, em pleno século 21, ex-roqueiros, travestidos de transgressores defendendo bandeiras anticomunistas e de extrema-direita.

Chico, que nas palavras de do humorista Millôr Fernandes (1923-2012), era a única “unanimidade nacional” reportando-se ao sucesso do artista entre todas as classes sociais e diferentes correntes do pensamento, já enfrentava um certo preconceito de uma crítica conservadora, preocupada apenas com a estética e com os modismos, aos quais Chico nunca se prendeu. Uma crítica baseada em valores burgueses.


Encenação do musical A Ópera do Malandro, uma das produções de Chico Buarque para o teatro

O próprio autor afirma que teve que fugir da escola para aprender a lição sobre a necessidade de sua dedicação ampla, geral e irrestrita à música e às letras com tanto valor que passou a ser perseguido pelos censores de plantão. Houve época em que o aparecimento de seu nome já era suficiente para vetar qualquer obra. A MPB e a cultura ganharam.

Chico transgressor

Mas claro que ninguém se toca com a aflição de um autor que observa a favela descendo para o asfalto e numa alegria fugaz canta a esperança sobre a campanha das Diretas Já, em 1984. Marca registrada de Chico Buarque com sua crença no futuro da humanidade. Inventou pseudônimos e foi em frente. Construiu uma carreira sem ceder à repressão. Preferiu negar e superar uma ditadura feroz contra tudo e contra todos que pensavam diferente (qualquer semelhança com Bolsonaro e seus seguidores não é mera coincidência).

Politizou a MPB com obras fortes e transgressoras quando podia facilmente ceder e viver em águas mansas. Deu um chute no bom mocismo com a roda viva da vida que não estancou nem um minuto e cresceu para mostrar ao mundo que o Brasil gritava por liberdade e justiça e ainda grita.

As mazelas dos desvalidos e dos marginalizados fizeram a sua temática. Utilizou a palavra paralelepípedos na canção Vai Passar, hino da restauração da democracia. Em Construção, terminou todos os versos em proparoxítonas, as mais raras da língua portuguesa, para falar de um assunto tratado com banal: a vida de um operário.

Nada escapou de seus versos. A hipocrisia de setores da sociedade contra tudo e contra todos que “ameaçassem” seus privilégios. “Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria”, canta ele em As Caravanas. Tão real e assustador.

Os versos de Cálice foram adaptados por secundaristas de Guarulhos, na Grande São Paulo, para defender a ocupação de escolas em 2015 contra a destruição da educação pública. E Apesar de Você foi cantada em inúmeras manifestações pela democracia e pela justiça.

Sempre atual, Chico ingressou para valer na literatura com o romance Estorvo em 1991. Já havia publicado Fazenda Modelo (1974), uma novela agropecuária como metáfora da ditadura (1964-1985). Nesse período praticamente toda a poesia buarqueana era em metáforas para ludibriar a censura.





Ao lado de seu grande ídolo da música, Tom Jobim foi vaiado na final do Festival Internacional da Canção, com a linda Sabiá, em pleno Maracanazinho lotado, em 1968. A torcida era para Pra Não Dizer que Não Falei de Flores, de Geraldo Vandré, um hino das esquerdas na época.

“Chico está em tudo”

Com uma obra vigorosa, ciente de sua função social, provocou profundas reflexões sobre tudo o que há entre o céu e a terra. Escolheu cantar a alma feminina como maneira de denunciar o machismo intrínseco na sociedade patriarcal, racista e LGBTofóbica.


Chico, com a bandeira do Fluminense, depois de voltar ao Brasil, em 1970, após exílio na Itália

No romance Budapeste (2003), mostra um ghost writer (escritor fantasma) lidando com sua consciência e a vontade de sentir-se valorizado por seu trabalho. Sofre porque escreve para outros e tenta fugir dessa realidade. Ganhou neste ano o Prêmio Camões de literatura pelo conjunto de uma obra afinada com a história do país e com a vontade de suplantar todas as mazelas de uma sociedade presa ao preconceito e à ignorância.

Foi transgressor em todos os seus versos e prosas contra o proselitismo burguês em manter tudo como está custe o que custar. Sobre a predominância da música brega, que, para ele, representa a cultura brasileira, disse, certa vez, que “piorou quando melhorou”. Por isso, com a melhoria de vida dos mais pobres e o avanço da democracia, essa cultura aflorou e mostrou a cara de um Brasil antes reprimido.

Por toda essa vontade em transgredir e elevar a cultura a patamares mais avançados, se afina com a história como nas peças Ópera do Malando (1979) e Calabar – o Elogio da Traição (1973), essa proibida depois de liberada para dar prejuízo econômico. Também no romance Leite Derramado (2009), o personagem narrador reflete, num leito de hospital público, as reminiscências de uma classe senhorial com horror ao Brasil e seu povo, representados pela personagem Matilde, uma mulata cheia de vida e planos.


Chico, com o elenco do filme Estorvo, baseado no primeiro romance de sua autoria

Conjuga temas como o amor e a sexualidade com questões sociais e políticas com um olho sempre a boiar e o outro a agitar. Nisso se fiam suas criações musicais, teatrais e literárias. Bastariam suas obras musicais e dramatúrgicas para colocá-lo na história da cultura nacional, que somadas às suas produções literárias o elevam ao time dos grandes escritores do Brasil e do mundo. Levou o Prêmio Camões – e quem sabe seja o segundo em Língua Portuguesa a ganhar um Nobel de Literatura, já que o único a levar esse prêmio para o seu país até hoje foi o português José Saramago (1922-2010), em 1998.

Como diz Caetano Veloso, “Chico está em tudo. Tudo está na dicção límpida de Chico. Quando o mundo se apaixonar totalmente pelo que ele faz, terá finalmente visto o Brasil”. O compositor, cantor e escritor carioca, do Brasil e do mundo, canta as “tenebrosas transações” de uma pátria distraída e enganada por “descuidos” de juízes comprometidos com a falcatrua e a mentira.

Chico mostra que tem lado. O lado das classes populares, o lado da vida, da justiça, da igualdade de direitos, do repeito à dignidade humana e da liberdade. Todos esses temas estão presentes em sua obra, que poderá ser ouvida, assistida e lida daqui a 500 anos e ainda se mostrar atual pelo que tem de profundamente humano.

Uma obra vigorosa, ciente de sua função social de levar as pessoas a reflexão, candura e inteligência mesmo num momento obscuro com predominância do ódio e da violência. Porque o descuido de quem oprime pode ser o desfecho da festa da democracia de quem ama e sorri para a vida. Chico Buarque rompeu tradições, respeitou as raízes da cultura popular e construiu tijolo por tijolo num desenho sólido uma obra a toda prova do ranço venha de onde vier.


A convite da editora, Chico faz leitura de seu romance Leite Derramado, de 2009

Leia trecho do romance

Leite Derramado (2009)

O leite de Matilde era exuberante, agora mesmo ela encheu duas mamadeiras antes de dar o peito à criança. Eu gostava de vê-la amamentar, e quando ela trocava a criança de peito, às vezes me deixava bicar no mamilo livre. Com isso saímos um pouco atrasados, ficando as mamadeiras com a Balbina só por precaução, pois um jantar na minha mãe não passaria das onze. Nos tempos do meu pai, sim, os banquetes no casarão eram célebres por atravessar a noite, reuniam políticos de todas as correntes e as mulheres mais deslumbrantes da cidade. Ardiam tochas no jardim, a casa cheirava a alfazema, até as estátuas estavam de banho tomado, e eu menino gostava de circular pelos salões silenciosos e solenes, minutos antes do início da festa. Gostava de ser o dono daqueles espaços ainda imaculados, só eu com minhas sombras a deslizar no mármore, diante de garçons perfilados como sentinelas. Mas este seria um jantar reservado, sem garçons nem tochas, porque mamãe ainda guardava luto, e a muito custo concedera em abrir a mansão para um simples engenheiro. Como imagino o quanto lhe custara ao amor-próprio escrever seguidas caras à Companhia, até conseguir para o filho o antigo posto do marido.

Mas no que o vigia abriu o portão, me surpreenderam as fartas luzes em todas as janelas, como numa casa de muitas crianças. Com o jardim às escuras, o casarão parecia flutuar na noite, quase mais imponente que nos tempos de papai. Talvez mamãe quisesse deixar claro aos franceses que, no fim das contas, a casa dos Assumpção não lhes devia favor algum. Ela estava no piano, que desde a viuvez praticava sem soar, apenas roçando as teclas, para honrar meu pai e não esquecer Chopin. Passou comigo e com Matilde para o sofá luís-quinze ali mesmo na sala de música, onde o mordomo nos serviu champanhe e o seu refresco. Sentado entre as duas, eu me sentia um pouco tenso de postura, o sofá luís-quinze não era confortável.

Permanecemos um tempo sem assunto, ao som do pêndulo do grande relógio, enquanto Dubosc não chegava do seu habitual coquetel na embaixada francesa. Mamãe amava o silêncio, e para o ressaltar, em breve voltou ao piano e retomou sua valsa muda. Mas quando o relógio deu dez horas, fechou a tampa com estrondo, chamou o mordomo com um sininho e mandou servir o jantar. Matilde levantou-se num pulo, como era do seu jeito, e postou-se na minha frente para ser admirada, o vestido areia sobre o sol estampado em sua pele. Então pode ser que eu a tenha despido com os olhos, como se dizia, porém neste momento a memória me prega uma peça. Dispo Matilde com os olhos, mas ao invés de vê-la nua, vejo o vestido sem o corpo dela. Vejo-me a cheirar o vestido, a alisá-lo por fora e pro dentro, a agitá-lo par ver o caimento da seda, vou levá-lo. Em troca de seiscentos mil-réis, recebo o embrulho de uma das mãos velhas, cheias de pintas, e acho que era aí que eu queria chegar. Cheguei às mãos sarapintadas da madame, de quem vi meu pai comprar um vestido rodado azul-celeste, na mesma semana em que foi assassinado.


por Marcos Aurélio Ruy, Jornalista | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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