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João de Sousa

Domingo, Novembro 24, 2024

Como o estadista José Bonifácio fundou o Brasil

Como homenagem e compromisso, o Instituto José Bonifácio nasceu adotando o nome do maior estadista do Brasil, José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, um homem que, no testemunho de Machado de Assis, soube dignificar a Pátria “e honrar a espécie humana.” Para um curioso delimitar a grandeza de José Bonifácio de Andrada e Silva, bastaria dizer isso, que o Patriarca foi ídolo de Machado.

Recatado, na política como na vida, mais habituado à crítica fina que ao elogio largo, o Bruxo do Cosme Velho incensou o Bruxo da Independência. “Tudo votaste à liberdade nossa / … Nunca interesse vil manchou teu nome”, escreveu Machado num canto do poema Americanas, de 1875. O maior escritor do Brasil virou fã de um poeta bissexto: “As odes de José Bonifácio são magníficas. As belezas da forma, a concisão e a força da frase, a elevação do estilo, tudo encanta e arrebata(…) José Bonifácio foi a reunião dos dois grandes princípios pelos quais sacrificava-se aquela geração: a literatura e a política.”

À literatura ele se dedicou cedo, já em Santos (SP), onde nasceu numa família rica, em 13 de junho de 1763. Estudante em São Paulo, teve como tutor intelectual o bispo Dom Manuel da Ressurreição, cuja biblioteca devorou até estender sua curiosidade além do mar: aos 20 anos, embarcou para o Rio de Janeiro, com destino a Lisboa, e por 37 anos ficou longe do Brasil. Diplomou-se em Filosofia e Leis pela Universidade de Coimbra, e logo entrou para a Academia de Ciências de Lisboa, da qual viria a ser secretário perpétuo. Sua primeira contribuição foi um estudo intitulado Memória sobre a Pesca das Baleias e Extração do seu Azeite; com Algumas Reflexões a Respeito das Nossas Pescarias.

Preparado para entender o mundo, José Bonifácio foi contratado pela Coroa para fazer uma excursão científica. Durante dez anos, palmilhou a Europa como um coletor do conhecimento. Estudou Mineralogia e Química em Paris, onde foi aluno dos luminares e, dizem os biógrafos, pode ter assistido a aulas do químico Antoine-Laurent Lavoisier. Admirador dos filósofos Jean-Jacques Rosseau e Voltaire, Bonifácio teve a fortuna de ver a Revolução Francesa nas ruas, mas, apesar de simpático às transformações introduzidas por aquele grande movimento de ruptura, retraiu-se por causa do radicalismo. Monarquista por doutrina, preferia os reis polidos pela Ilustração.

A Revolução que degolava nobres era assunto desagradável na Corte de Lisboa. Talvez por isso tenha feito poucas observações de cunho político em seu diário parisiense, mas não deixou de registrar que foi ao cabeleireiro, comprou roupas, fivelas para os sapatos e uma noite de amor com duas francesas – outra marca da sua vida: o gosto da mulher bonita, tão sem fronteiras que consta ter se batido em duelo com quatro maridos roídos de ciúme.

Esteve na Noruega, Dinamarca e Suécia, onde recusou um convite do rei para assumir o serviço de mineralogia. Na Alemanha, ficou amigo de um grande sábio da época, o naturalista Alexander von Humboldt, que, em 1799, seria impedido de entrar no território do Brasil para fazer pesquisas científicas, pois os portos estavam fechados aos estrangeiros. Na Universidade de Pavia, na Itália, privou com o físico Alessandro Volta, inventor da pilha elétrica e de cujo nome foi tirado o batismo da unidade de força eletromotriz, volt.

De volta a Portugal, em 1800, tornou-se professor de Mineralogia de Coimbra, mas logo sentiu que o figurino intelectual era apertado demais para a gordura científica que acumulara. Ficou no cargo, sem entusiasmo, mas deixou trabalhos visionários em Coimbra, em campos até então inexplorados, como o da ecologia, ao preconizar o plantio de “novos bosques em Portugal”. Com sede de fazer, desenvolveu uma experiência agronômica paralela nos arredores da cidade.

Um mineralogista alemão, o barão Guilherme Von Eschwege, trabalhou com ele e registrou outro traço forte do gênio brasileiro, o brio exagerado. Se algo ia bem, assumia a paternidade. Se dava errado, culpava os auxiliares. Mas sabia comandar. Em 1808, não hesitou em trocar a pena pela espada para combater as tropas francesas que haviam invadido Portugal e provocado a fuga da família real para o Rio de Janeiro.

Já de cabelos brancos, um tanto gordo para a estatura mediana, o rosto pequeno e redondo onde brilhavam os miúdos olhos pretos, voltou ao Brasil em 1819. Já não tentava ser um dândi, como em Paris, mas guardava o hábito de consumir pouco vinho e muita pimenta. Seu pai, o fidalgo português José Ribeiro de Andrada, morrera em 1789, mas a mãe Maria Bárbara o esperava ao lado de outros dois filhos importantes, Martim Francisco, que viria a ser ministro da Fazenda de Dom Pedro I, e Antônio Carlos, que estava preso por participar da rebelião de 1817 em Pernambuco.

Novamente, o reconhecimento de Machado de Assis: “Os Andradas foram a trindade simbólica da inteligência, do patriotismo, e da liberdade. A natureza não produz muitos homens como aqueles”. Bonifácio trouxe na bagagem intelectual e afetiva uma biblioteca de 6 mil volumes, grande até para os padrões atuais, comparável, entre homens da mesma cepa na época, à do americano Tomás Jefferson. Em Santos também se acomodaram a mulher de origem irlandesa, Narcisa O´Leary, com quem ele teve as filhas Carlota Emília e Gabriela Frederica, e outra menina, Narcisa Cândida, gerada fora do casamento.

Recusou cargos menores oferecidos por Dom João VI e foi redescobrir o Brasil numa demorada Viagem Mineralógica. Eleito para a Assembleia Paulista, apresentou um trabalho de título modesto (Lembrança e Apontamentos para o Governo Provisório) mas de conteúdo soberbo: era de longe o maior projeto nacional feito para o Brasil. Desde quando estudava em Coimbra já esboçara propostas para a solução de deformidades que ainda hoje atormentam a sociedade brasileira.

“No tocante aos índios, pensava que deviam ter liberdade, ensinando-lhes a língua portuguesa, abolido o regime dos ‘Diretores’, criado pelo Marquês de Pombal depois da expulsão dos jesuítas”, resumiu Otávio Tarquínio de Sousa numa primorosa biografia. “Quanto aos escravos, queria a extinção do comércio de carne humana e do regime de trabalho servil, preocupado com a sua corruptora influência moral e social, com as suas injustiças e malefícios”, anotou Tarquínio.

No conjunto de uma obra enciclopédica, Bonifácio preparou também um minucioso projeto de reforma agrária. Como era comum aos sábios do seu tempo, tinha ideias para tudo. Sugeriu que os brasileiros trocassem os sufocantes trajes portugueses por leves roupas de algodão compatíveis com o calor e a umidade dos trópicos. Preconizou banhos frios para todos (embora soubesse que só os índios tivessem o hábito de se lavar regularmente), e aconselhou a proibição da cachaça e do uso de facas de ponta, além de sugerir a troca da farinha de mandioca pela de milho, por julgá-la (erradamente), mais nutritiva e propícia a um prato que considerava divino, a polenta italiana. Idealizou ginásio, biblioteca e tipografia em cada província, escolas primárias em “todas as cidades, vilas e freguesias” e superiores nas capitais, além de uma universidade e a “fundação de uma cidade central no interior do Brasil”.

O processo da Independência, a começar da Conjuração Mineira, foi cumulativo e regado com audácia e sangue. Muita gente matou e morreu por ela, travando, antes e depois do ato formal, “uma guerra maior, pelos combates e pelo número de homens, que as de Bolívar e San Martin”, segundo o historiador José Honorário Rodrigues, referindo-se às campanhas de libertação do Chile e do Peru e da Grande Colômbia. De tal sorte que, quando Dom Pedro deu o pacífico Grito do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822, a Independência já havia ocorrido.

A decadência do colonialismo lusitano, iniciada em rigor no século 17, estava avançada quando a burguesia comercial da Corte, incapaz de progredir sem pilhar as colônias, tentou recolonizar o Brasil. As elites dos trópicos entenderam que deveriam fazer a Independência antes que outros a fizessem, preocupadas não só com as guerras civis libertadoras da América do Sul mas também com o episódio do Haiti, tomado pelos escravos à França.

O protagonismo de José Bonifácio de Andrada e Silva foi menosprezado pela chamada história oficial, escrita com as tintas áulicas do passado, e deturpado pelos que se meteram a revisá-la com o retrovisor revolucionário do presente. Ambas as correntes salientam que o Patriarca da Independência aderiu tardiamente à causa e não passou de um chefe de polícia. “Autoritário, sim. Caudilhesco, não”, respondeu o escritor e admirador Gilberto Freire, engatando uma pergunta: “Que nação moderna pode ufanar-se tanto, como deveria ufanar-se o Brasil, de ter tido como seu fundador figura tão completa na sua grandeza como José Bonifácio? Parece que nenhuma.”

De fato, “a ideia de José Bonifácio era a da união luso-brasileira, absolutamente possível e absolutamente sensata ainda hoje”, disse seu biógrafo Gondin da Fonseca. O Patriarca achava que a Independência deveria ser feita com o jovem príncipe português que, moldado por ele no figurino que o florentino Nicolau Maquiavel talhou para Lourenço de Médici, garantiria a unidade nacional de um País em que as autonomias regionais poderiam gerar não uma, mas várias independências. Quanto à adesão tardia, na entrevista que deu ao jornal O Tamoio, assinada por um incerto “Tapuia”, mas provavelmente redigida por ele mesmo, em 2 de setembro de 1823, a primeira de um homem público a um jornal brasileiro, o vaidoso Bonifácio declarou-se “o primeiro que preguei a Independência e a liberdade do Brasil”.

No xadrez político, ele era o centro. À sua esquerda, pulsavam os liberais exaltados como Joaquim Gonçalves Ledo, prócer de uma linhagem política de grilos-falantes que ainda hoje rufam os tambores da retórica na política brasileira. Bonifácio chamava-os de “anarquistas” ou “cabeças esquentadas”. Do outro lado, pululavam os “chumbeiros” ou “pés-de-chumbo”, comerciantes poderosos, traficantes de escravos, nostálgicos do poder de Lisboa, que queriam manter antigos privilégios.

A formação social do Brasil no primeiro quartel do Oitocentos era dominada pelos senhores de terras e escravos, e comerciantes, reinóis uns, brasileiros outros. Destacava-se ainda a camada de funcionários públicos exaltados, de que Ledo era um exemplo. A grande massa de brancos sem posse ou escravos sem voz não influía. Tal quadro não permitia que as mudanças fossem além do que foram, e o sábio Bonifácio guiou-se por esta análise. Realista na política, autoritário no método, impaciente para fundar o Estado Nacional, intolerante com a cegueira dos aliados, o estadista arquitetou uma transição conservadora, embora conquistada a ferro e fogo.

Ministro do Reino e Negócios Estrangeiros, preparou o terreno da Independência, fortalecendo Dom Pedro, que assumira o poder após a volta de seu pai, Dom João VI, para Portugal, e em 9 de janeiro de 1822, recusou-se a também regressar a Lisboa e instaurou o Dia do Fico. Já em janeiro de 1822, o ministro determinou que toda lei vinda de Lisboa teria de ser sancionada pelo príncipe regente. A seguir, costurou o apoio de províncias indecisas, sobretudo Bahia, Minas e Pernambuco, todas “jogando com pau de dois bicos”, à autoridade do príncipe, e o mandou a Vila Rica “a fim de pacificar e converter os facciosos” de Minas.

Em maio, deu instruções ao cônsul que enviaria a Buenos Aires, Manuel Antônio Correia da Câmara, para que iniciasse negociações com a Argentina visando à criação de uma federação sul-americana, salientando que “o Brasil grande, rico e poderoso só precisava de vizinhos abastados e venturosos para comerciar e defender-se com eles”. O estadista que tracejou a autonomia nacional, integração dos índios, a reforma agrária, a substituição do trabalho servil pela mão-de-obra livre, a transferência da capital para o Centro do País, a política externa independente, o voto das mulheres, também foi, como se vê, um pioneiro do Mercosul.

Saiu da pena de Bonifácio o verdadeiro Manifesto da Independência, que é de agosto de 1822. Nesta proclamação dirigida às nações amigas, que pode ser considerada a ata de fundação do Estado Nacional, o Brasil se pôs em igualdade a qualquer outra e declarou-se “livre”, “sacudido o jugo da sujeição e inferioridade com que o reino irmão o pretendia escravizar, e passando a proclamar solenemente sua Independência…”.

A reação de Lisboa, que rebaixara Dom Pedro de regente a mero delegado da Corte, fez o Andrada tomar precauções militares. Com o apoio da princesa Carolina Leopoldina, arquiduquesa da Áustria, com quem conspirava em alemão ou francês (ele falava seis idiomas e entendia outros cinco), preparou a ruptura formal, enviando ao príncipe a carta-provocação que resultou no Grito do Ipiranga.

Segundo o historiador Rocha Pombo, Bonifácio manobrou para que o ato solene, “por um capricho do seu coração”, ocorresse em sua terra natal. O brado “Independência ou Morte” não foi um improviso: já era mencionado no Apostolado maçônico do Andrada no Rio. Otávio Tarquínio de Sousa, na biografia José Bonifácio, especula que seria a “senha que o ministro incansável sugerira ao príncipe para a grande ocasião.”

Como chefe do Conselho de Ministros, Bonifácio estendera um cordão de espinhos para abrir caminho à Independência – onda de violência chamada Bonifácia. Seu grande propósito, desde o Dia do Fico, foi fazer da Monarquia “um centro de força e união”, e, primeiro, abrasileirar o príncipe, não nos usos e costumes, pois desde cedo Dom Pedro se diferençou da camarilha com que veio para o Brasil, em 1808, comendo farinha de mandioca enquanto a nobreza importava trigo para o pão, e misturando-se aos nativos e sobretudo às nativas como se fosse um deles. O mestre cuidava de abrasileirá-lo para o poder, sugerindo-lhe, se seguiu as lições de Maquiavel, a troca do “principado hereditário” pelo “principado novo”, e é neste, como disse o filósofo de Florença, “que residem as dificuldades”.

Nesta carpintaria política, pôs-se a proteger o príncipe – dos inimigos e sobretudo dos aliados. Prendeu muitos e exilou vários. Achava a Constituinte prematura e palco de desavenças que poderiam retalhar a Nação, mas, quando aderiu, ela foi dissolvida pelo imperador. Providenciou a primeira lei de imprensa brasileira (introduzindo o instituto do tribunal do júri para julgamento dos réus) e fechou o jornal de Ledo, o Revérbero Constitucional Fluminense, e o Correio do Rio de Janeiro, tribuna do português José Soares Lisboa, independentista de primeira hora, que ousara desafiar o príncipe. Ambos foram para o exílio.

Registre-se que as boas maneiras eram artigo raro na imprensa. O próprio Dom Pedro escrevia diatribes anônimas, chamando os adversários de filhos da p. e cornos. Não raro jornalistas sofriam atentados, como aconteceu com Luís Augusto May, de A Malagueta, e Evaristo da Veiga, da Aurora Fluminense– ambos debitados, sem provas, na conta de Bonifácio.

Mais difícil que fazer a Independência foi consolidá-la. As divergências entre os aliados eram enormes. Algumas províncias, dominadas pela elite de origem portuguesa, se já tinham resistido a Dom Pedro regente, agora opunham-se ao imperador. Bonifácio, sem poder contar com o Exército, comandando por lusos, fundou a Marinha, “tomando as primeiras medidas necessárias à criação de uma força naval”, narra o historiador Nélson Werneck Sodré em História Militar do Brasil.

O comando foi dado ao almirante inglês Alexandre Tomás Cochrane, que lutara ao lado de José de San Martín pela libertação do Chile e do Peru, onde granjeou o apelido de “El diablo”. Lord Cochcrane submeteu as províncias rebeldes da Bahia, Piauí, Maranhão, e o capitão John Grenfell fez a bandeira imperial tremular no Pará em 15 de agosto de 1823.

Na jornada da Independência, os defeitos de Dom Pedro rivalizaram com suas virtudes. Impulsivo, absolutista, “cheio de ambições, amando a glória, a aventura, o perigo, e tendo por herói predileto a Napoleão, seu concunhado”, como escreveu Otávio Tarquínio de Sousa, o imperador de 23 anos fugiu do molde do seu carpinteiro político, o qual, ainda nas palavras de Tarquínio, empenhava-se “em estabelecer as bases políticas da existência nacional brasileira como se executasse uma tarefa científica.”

No entanto, davam-se bem o velho e o moço. O velho era, porém, mais jovial. “José Bonifácio, com 60 anos, era alegre, brincalhão, zombeteiro, sem nada dessa falsa gravidade ou compostura de que se revestem geralmente os homens da sua idade”, apurou Tarquínio. “Viva Dom Pedro I, está bem, mas viva sobretudo José Bonifácio!”, escreveu o jornalista Odilo Costa Filho, pesquisador dos documentos do Patriarca no Instituto Histórico.

A reverência do pupilo ao mestre era tão grande que Dom Pedro, muitas vezes, quando queria despachar com Bonifácio, não o chamava ao Paço de São Cristóvão, mas ia de cavalo à casa do ministro no Largo do Rocio, atual Praça de Tiradentes – viagem que lhe dava o álibi de passar noutros endereços e alcovas. Tanta consideração gerou ciúmes e mesquinharias, a ponto de os maledicentes, ao virem o cavalo do imperador, dizerem “lá está Dom Pedro, ajudante-de-ordens do Bonifácio”.

Os radicais e a classe dominante portuguesa minaram o Patriarca como um cupim ordinário a roer madeira nobre. Seu irmão, Martim Francisco, ministro da Fazenda, ao cobrar impostos atrasados num reino à míngua, atraía a ira dos “chumbeiros”. O terceiro mano, Antônio Carlos, equilibrava-se na presidência da Constituinte. Os grupos desentenderam-se já por época da coroação, pois Bonifácio se opôs à pretensão de que o imperador jurasse obediência à Constituição que estava em preparo. Era um cheque em branco que o estadista não queria dar, por temer propostas demagógicas e uma Carta inexequível, e não deu.

Colecionou mais inimigos ao convencer o imperador a fechar a poderosa Maçonaria, de que ambos eram integrantes, mas que estava sendo usada como centro de contrapoder pelos radicais. Contudo, Dom Pedro logo revogou as medidas, e o ministro e seus irmãos demitiram-se em 27 de outubro. Um amplo movimento pediu a volta dos Andradas, e José Bonifácio regressou ao poder mais forte e audacioso, pronto a massacrar os adversários com prisões, exílio e fechamento de instituições.

A Bonifácia juntou liberais e conservadores. Segundo Tarquínio de Sousa, Dom Pedro não ouvia outra coisa que não queixas contra o ministro todo-poderoso. Desfez as medidas repressivas, e Bonifácio saiu de vez do governo em 15 de julho de 1823. “Vencera a conspiração dos medíocres contra o homem superior”, concluiu Tarquínio. Vale para esse desfecho a opinião do historiador José Honório Rodrigues: “Não foi o gênio cáustico e atrabiliário de José Bonifácio que motivou sua expulsão do comando do processo histórico. Trabalharam nesse sentido as forças que desejavam travar o processo de libertação, no seu triunfo contra as aferradas instituições coloniais”.

Por considerar o imperador um governante “sem sistema nem plano”, que “vivia aos boléus, de um lado para o outro, empurrado pelas intrigas”, Bonifácio muniu-se da certeza de que “não dobrara o joelho”, e foi defender suas ideias no jornal O Tamoio e na Constituinte, tornando-se o principal redator da Carta Magna que o imperador rasgaria e substituiria por outra preparada sob sua medida. A Assembleia foi dissolvida, deputados presos, inclusive os três Andradas. Ao chegar ao Arsenal da Marinha, o Patriarca foi vaiado, e comentou: “Hoje é o dia dos moleques.”

Mais que isso: armava-se, de acordo com José Honório Rodrigues, “uma formidável coligação política de reacionários e exaltados, estimulados pelo repúdio às medidas políticas e sociais avançadas que José Bonifácio propunha.” Seu destino seria o exílio, com a família, incluindo os irmãos, em lugar incerto, que a viagem demorou seis meses, até a charrua errante aportar no porto de Vigo, na Espanha, e ser remetida a Bordéus, na França, onde o Patriarca viveria seis anos no povoado de Talence, atento a tudo o que acontecia no Brasil, saudoso do sol e reclamando do frio, estudando ciências e saboreando Os Lusíadas, perseguido pelo governo português e vigiado pelo francês, a mando de ninguém menos que o escritor Chateaubriand, ministro dos Estrangeiros. Num arroubo, chegou a dizer que iria trabalhar nas minas da Guatemala.

Dedicou-se aos versos (“antes nascidos que feitos”). Lá publicou com o pseudônimo de Coimbra as Poesias Avulsas de Américo Elísio, quase sem rimas, pois achava que a língua portuguesa não precisa de rimas para “deleitar o ouvido”. O crítico Péricles Eugênio da Silva Ramos sustenta que “as ideias de liberdade poética de José Bonifácio tiveram influência em nosso Romantismo, por exemplo sobre Gonçalves Dias.”

No exílio nasceu, por sinal, outro poeta da família, o sobrinho e neto que lhe tomou o nome, José Bonifácio, o Moço, filho de seu irmão Martim Francisco e de sua filha Gabriela, que viria a ser ministro da Marinha (1862) e do Império (1864) e deixou na obra uma ode ao traidor Domingos Calabar (“Oh! não vendeu-se, não! — Ele era escravo do jugo português”).

No desterro de Valence, Bonifácio manteve sua atenção ao trato social e cuidou com discrição de duas ex-namoradas francesas que o procuraram, uma delas trazendo ao colo uma suposta filha dele. Irritou-se, e muito, ao saber que o imperador titulara a amante Domitila de Castro como Viscondessa de Santos, “a pátria dos Andradas… Que insulto desmiolado”. Ele sempre se opôs ao romance real com a “michela”, para não dizer prostituta, que mais tarde seria elevada a marquesa – talvez por achar que aquele era um dos “desbragados vícios”, segundo Maquiavel, que fazem um príncipe ser odiado.

Seis anos de desterro, “sem crime nem sentença”. O próprio Dom Pedro atestaria que Bonifácio era inocente das acusações, “só desejava o meu bem e me queria como a um filho.” Voltaria a pisar no solo natal em 23 de julho de 1829, aos 66 anos, trazendo o cadáver da mulher Narcisa Emília, que morrera na viagem, e que ele só pôde enterrar com dinheiro emprestado pelo amigo e biógrafo Luís de Meneses Drummond.

Seus antigos inimigos liberais estavam no poder, mas, como é comum aos radicais, misturaram-se ferro que antes queriam transformar em ouro. Abriram a guarda quando o imperador fechou a Constituinte e fecharam a boca na feroz repressão à Confederação do Equador, em 1824, na qual Frei Caneca foi fuzilado.

O mestre e o pupilo logo se reencontram numa cena em que o pai pródigo voltou à casa do filho. À mulher nova, a linda bávara Maria Amélia de Leuchenberg (Dona Leopoldina morrera em 1826), Dom Pedro apresentou Bonifácio como um amigo. Fora da política, o Patriarca recolheu-se com os livros, a mineralogia e o reumatismo na Ilha de Paquetá.

Mas já em 1830 voltaria às manchetes, acusado de uma conspiração republicana. Frequentaria ainda a Câmara, na condição de suplente de deputado pela Bahia, eleito quando estava no exílio, e apresentou as propostas de integração dos índios e Abolição da Escravatura, além de estender o voto às viúvas chefes de família, cabendo lembrar que a mulher que só conquistaria o direito de votar em 1932.

O ambiente político agitava-se. Dom Pedro era uma decepção. O nativismo acirrava-se. O País perdeu a Guerra Cisplatina. Estouraram revoltas, provocando a abdicação em 7 de abril de 1831. O imperador ia em busca de outro trono, o de Portugal, vago com a morte de seu pai, Dom João VI, no qual conseguiria assentar a filha Maria da Glória.

O varão, Pedro II, ele deixou aos cuidados de Bonifácio, “meu verdadeiro amigo”. O velho carpinteiro aceitou a tarefa, talvez com a esperança de fazer do filho o rei que não conseguira modelar no pai, mas foi perseguido pela Regência Trina, a começar do Padre Feijó, e pelo Parlamento, que o acusavam de conspiração e novamente o processaram. O jornalista Evaristo da Veiga, autor da letra do Hino da Independência, acusou-o de dar festas impróprias às crianças.

Não era querido, também, pela camarilha palaciana, liderada por Dona Mariana de Verna, com quem conspirava ninguém menos que o ministro da Justiça, Aureliano Coutinho. Quando Bonifácio foi enfim destituído da tutoria de Dom Pedro II, em 14 de dezembro de 1833, o ministro escreveu: “Parabéns, minha senhora: custou mas demos com o colosso em terra”.

O colosso, no entanto, faria jus ao epíteto. Considerou-a ilegal e, aos 70 anos, avisou que resistiria à destituição. Até que dois generais, um deles José Joaquim de Lima e Silva, tio do Duque de Caxias, e 240 soldados cercaram o Paço da Boa Vista, prenderam e arrastaram o velho teimoso para Paquetá. De lá ele enfrentou o processo por conspiração, do qual foi absolvido por unanimidade, decisão saudada, segundo Tarquínio de Sousa, por 2 mil pessoas que se aglomeravam em torno do tribunal.

Acomodou-se na “ilha filosófica” de Paquetá. De casa só saía para reuniões no Rio, científicas umas, outras na Maçonaria, da qual voltara a ser grão-mestre. Ainda gostava de pirão, feijão com toucinho, jambo e um gole de vinho de jabuticaba, e odiava banho quente. São desta fase os retratos do velhinho cabisbaixo mas de olhar altivo, grandes cabelos brancos, andando com amparo de um sobrinho, atormentado pelo reumatismo e por uma aparente complicação circulatória que o fez buscar assistência em Niterói, sendo atendido por 12 médicos divergentes, que, copiando os liberais, minavam-lhe ainda mais a saúde com jejuns, sangrias, purgativos e sanguessugas.

Morreu às 3 horas da manhã de 6 de abril de 1838, com 75 anos de idade, não sem antes de pôr uma cadeira na porta e encantar as crianças da Rua do Ingá com suas histórias de sábio e herói.


por Sérgio Buarque de Gusmão, Jornalista, é autor de Nova História da Cabanagem (Garcia e Amazon, 2016)  |  Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Bonifácio) / Tornado


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