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Sábado, Dezembro 21, 2024

Contra a ciência racista do século XXI

José Carlos Ruy, em São Paulo
José Carlos Ruy, em São Paulo
Jornalista e escritor.

Os cientistas afirmam poder resolver desigualdades raciais nos cuidados de saúde através da genética. É uma abordagem equivocada e perigosa, cujo resultado pode tornar o racismo uma doutrina científica.

por Tina Sikka

A história e a existência contínua de práticas racistas na ciência e na medicina têm sido submetida a um escrutínio muito esperado nos últimos anos. Desde a adaptação de “A Vida Imortal” de Henrietta Lacks para a telinha, em 2017, há uma recontagem da história estadunidense de esterilizar comunidades raciais; houve uma discussão na campanha presidencial sobre as taxas de mortalidade materna das mulheres negras, e estão sendo trazidas à luz a negligência e a violência do atendimento médico a populações raciais.

Diante da crescente conscientização popular sobre essa história, cientistas, acadêmicos, empresas e autoridades do governo convergiram para a ciência genética como solução para questões de racismo na área da saúde. Essa tendência vê a ciência genética como um veículo para direcionar pesquisas, regimes de saúde, dietas, vitaminas e suplementos para populações historicamente negligenciadas pelas ciência médica e da saúde tradicionais – ou seja, minorias marginalizadas. Mas essa tendência, que chamo de “a genetificação da raça”, também está tendo o efeito perverso de tornar a raça como uma categoria social e biologicamente “real”.

Os exemplos incluem pesquisas como a cartilha “Fatos-chave sobre a saúde e a saúde por raça e etnia” da Kaiser Family Foundation e estudos científicos que buscam estabelecer ligações entre grupos raciais e a prevalência de doenças como o câncer de próstata. Esses estudos usam categorias raciais de maneira simplista, sem reconhecer adequadamente que as causas reais das doenças são ambientais, estruturais e políticas – mas foram feitas para se manifestarem de maneira racista.

Por sua vez, essas categorias raciais são cada vez mais valorizadas, embora a ciência por trás da medicina centrada no DNA esteja longe de ser indiscutível. Enquanto isso, a grande esperança de que a medicina genética proporcione uma panacéia para problemas de saúde ajudou as empresas e o Estado a fugir da necessidade de investir em sistemas públicos de saúde, lidar com as disparidades sociais e abordar as estruturas de classe que geram desigualdades na saúde.

Em vez de depender da genética da saúde, devemos lidar com os “determinantes sociais da saúde” que se dividem por linhas raciais não por causa da biologia e do acaso, mas por causa da história e das escolhas de quem está no poder. Isso resultou em grupos racializados que sofrem de níveis desproporcionalmente altos de estresse e falta de acesso a alimentos nutritivos e água limpa; educação; atendimento médico adequado; condições seguras de vida e trabalho (inclusive em relação à poluição); e estabilidade física e financeira. A desigualdade não está no DNA, mas nas estruturas sociais e políticas do capitalismo.

Ao discutir a saúde genética, tanto os cientistas quanto a esquerda devem considerar os seguintes fatores, todos eles em tensão um com o outro:

  • a existência de evidências científicas claras de que raça não tem base biológica (na verdade, existem mais diferenças genéticas dentro das categorias raciais do que entre elas);
  • a persistência, na ciência formal e popular, da idéia de raça usada como um substituto conveniente para categorizar populações (mesmo quando categorias biogeográficas ou étnicas são usadas como substitutas – já que classificações como européia, asiática e africana permanecem em competição); e
  • a infeliz realidade de que, apesar de raça ser uma ficção social, tem consequências materiais. Com relação à saúde, isso se manifesta em disparidades muito reais em que grupos racializados como negros e hispânicos em particular sofrem de taxas mais altas de mortalidade geral, doenças cardiovasculares, câncer, diabetes, asma e toda uma série de outras condições de saúde prejudiciais quando comparadas à população “branca”.

Para avançar em direção a um modelo que incorpore essas realidades, é importante entender a ciência básica subjacente à genética da saúde. Os meios atuais pelos quais corporações, instituições científicas e até mesmo empresas de pesquisas genéticas realizam esse trabalho é mapeando polimorfismos de nucleotídeo único (SNPs), que são variações de pares de bases de DNA, entre indivíduos relacionados a doenças específicas. Espera-se que isso leve a um senso mais apurado de quais grupos e indivíduos têm maior chance de sofrer de doenças específicas, já que os padrões de SNP podem ajudar a identificar populações em risco e tratá-las com mais eficiência.

Há, no entanto, várias suposições problemáticas por trás dessa lógica. Elas incluem os pressupostos:

  • que os dados genéticos coletados de pessoas em diferentes localizações geográficas podem ser considerados representativos de indivíduos fenotipicamente semelhantes (e que também mantêm noções problemáticas de “pureza” racial);
  • que os tamanhos das amostras que servem como populações de referência estão próximos de serem grandes o suficiente;
  • e que os genes funcionam isoladamente, e não em conjunto com o estilo de vida, o ambiente e várias redes de outros genes.

A crença de que se pode lidar com as disparidades de saúde racializadas através da ciência genética é infundada e desconcertante. Muitas vezes, até mesmo as doenças que se acredita serem ligadas a certos grupos raciais não têm, de fato, nada a ver com raça. Como Charles N. Rotimi e Lynn B. Jorde argumentam:

Exemplos bem conhecidos incluem a elevada prevalência da doença de Tay-Sachs entre pessoas de ascendência judaica Ashkenazi e doença falciforme, talassemia e deficiência de glucose-6-fosfato desidrogenase em algumas populações de ascendência africana. No entanto, a doença de Tay – Sachs é observada em populações não judias e tem uma prevalência relativamente alta em partes do Canadá francófono”.

Isso levou a erros fundamentais da ciência, a diagnósticos equivocados (particularmente quando os indivíduos podem mostrar os sintomas de uma condição, mas não se enquadram em categorias de prevalência), a estigmatização de indivíduos fenotipicamente associados a certas doenças e, criticamente, tendência a encontrar a raça no DNA.

Uma outra questão é como a genética da saúde pode ser usada para o lucro. Empresas de pesquisas sobre ancestrais como EasyDNA e 24Genetics – que oferecem recomendações duvidosas sobre saúde e nutrição com base em suas pesquisas – são obviamente beneficiárias. Talvez de forma mais ameaçadora, as empresas farmacêuticas estão preparadas para lucrar com a fenomenal ascensão da medicina baseada em raças.

Um exemplo importante é o patenteamento de BiDil, fabricado pela NitroMeduma, que combina dois medicamentos preexistentes (cujas patentes estavam prestes a expirar) para tratar insuficiência cardíaca em pacientes negros. Mais tarde foi descoberto que as pesquisas com a droga não estabeleceram a raça como um fator em sua eficácia, já que não havia um grupo de comparação (eles só testaram pacientes negros); eles contavam com a reanálise de dados mais antigos, e não prestaram atenção aos fatores ambientais. Assim, sob o pretexto de servir uma população subatendida, a BiDil ajudou a reificar as diferenças raciais – ao mesmo tempo em que estendeu convenientemente a patente do medicamento.

A solução destes problemas consiste primeiramente em uma reestruturação radical da ciência genética, de modo que a raça não seja mais usada como fator de diferença. Essa abordagem não é apenas cientificamente não informativa, mas também reafirma a raça como uma categoria biológica “real” que estigmatiza populações associadas a certas doenças, reforçando as bases do racismo sistêmico.

Também é necessário um entendimento mais amplo de como os genes funcionam como um fator entre muitos das doenças. Que incluem estilo de vida geral; fatores biológicos (como os genes não existem isoladamente, mas interagem com outros genes, com proteínas e com o ambiente); socioeconomia; falta de acesso a cuidados de saúde; vieses implícitos dos prestadores de cuidados de saúde; e questões estruturais como “práticas governamentais e empresariais, medidas de poluição em toda a área ou crimes violentos, características do ambiente construído, como sistemas de trânsito ou desertos alimentares”. Poderíamos até considerar as influências e os efeitos da industrialização e urbanização sobre a saúde.

Isso colocaria o ônus de abordar problemas de saúde em seus próprios lugares. Não em indivíduos racializados que seriam culpados pelas escolhas que fazem ou vistos como vítimas de sua biologia; mas sobre o Estado, que deve abordar as desigualdades estruturais e o racismo ambiental, facilitar o acesso aos cuidados de saúde e regular a voracidade das empresas em lucrar com a ciência distorcida.

Finalmente, precisamos entender melhor o papel que essas práticas raciais têm na produção de problemas de saúde. Barbara e Karen Fields definem a base do racismo com o que chamam de “racecraft”: uma espécie de truque de mágica através do qual a classificação racial passa de uma “maneira de isolar algumas das características da infinita diversidade humana”, generalizando-as em uma arquitetura de diferença biológica, social e até mesmo metafísica.A genética da saúde, através da construção de uma“ arquitetura ”médica da diferença, pode ser vista como uma forma própria de racismo. Ao usar os vastos recursos do establishment médico para promover a racialização das populações vulneráveis, pode-se estar apenas entrincheirando com o racismo e suas consequências.

Devemos nos envolver com a ciência genética como parte de uma complexa rede de fatores que determinam a saúde. Devemos nos aproximar da raça não como um meio científico para entender e fundamentar a diferença humana. E devemos levar o Estado a desafiar as forças estruturais que impactam negativamente a saúde. Trabalhar em direção a esses objetivos parece ser uma maneira muito mais proveitosa e socialmente justa de transformar para melhor a saúde de populações racializadas.


por Tina Sikka, Professora na Universidade de Newcastle (Reino Unido); trabalha em estudos feministas, teoria crítica da raça, saúde e meio ambiente | Texto em português do Brasil, com tradução de José Carlos Ruy

Exclusivo Editorial PV (Fonte: Jacobin)/ Tornado


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