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Quarta-feira, Julho 17, 2024

O fascismo jihadista e o feminismo contemporâneo

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

O jihadismo moderno, em qualquer das suas variantes, seja o da Irmandade Muçulmana do Qatar e da Turquia, seja – muito mais radical e perigoso – o da teocracia iraniana – é o fascismo dos nossos dias.

  1. O jihadismo centra-se na misoginia

Uma das primeiras medidas tomadas pelas autoridades iraquianas depois da ‘revolução islâmica’ – como tentei explicar em livro que escrevi sobre o assunto, a força militar que afastou Saddam foi americana, mas quem comandou as principais mudanças políticas subsequentes foi o jihadismo iraniano – foi a de obrigar as mulheres a depender da autorização dos maridos para obter passaporte.

Como pude testemunhar na altura, a instituição desta tutelagem das mulheres (que não vigora no Curdistão iraquiano) foi fortemente sentida por estas como um brutal retrocesso civilizacional. O regime de Saddam foi uma ditadura despótica, sanguinária e mesmo genocidária, mas não impunha esta tutelagem das mulheres. A história provou que era possível fazer pior que Saddam, com a agravante de esse pior ser zelosamente escondido da opinião pública.

O nó górdio do jihadismo é a negação da igualdade de direitos para as mulheres. A história social ajuda-nos de resto a entender isso. Como sabemos, com raras e honrosas excepções, a história da humanidade é marcada por uma persistente misoginia. É mais fácil encontrar no pensamento grego clássico que chegou aos nossos dias humanidade e consideração por escravos ou mesmo por animais do que a defesa da igualdade de direitos entre sexos.

Na época contemporânea, só ao longo do século XX, muito depois do início do movimento democrático, é que foi conquistado o princípio da igualdade de direitos para as mulheres, e foi-o lentamente, a reboque do movimento feminista.

O jihadismo moderno é um movimento contemporâneo do movimento de igualdade para as mulheres e profundamente reacionário, sendo que a radical oposição ao feminismo moderno é uma das suas principais motivações.

No Irão, o golpe antiliberal de 1953 contra Mossadegh – organizado em parceria pelo Xá, o clero Xiita e os serviços secretos britânicos – deu origem a uma curta lua-de-mel entre a coroa autoritária e o clero, baseada na repressão da dissidência religiosa (a perseguição dos Bahai e a demolição dos seus templos a que Mossadegh se tinha oposto recomeçou logo a seguir à sua deposição).

Sob pressão norte-americana, nos anos sessenta, o Xá promoveu a ‘revolução branca’ que passava pela reforma agrária (o que incomodava fortemente o clero latifundiário) mas tinha como ponto essencial a liberalização social, nomeadamente a promoção dos direitos da mulher. Foi este o ponto de ebulição que levou o clero a declarar o Xá como herético e a reclamar a sua execução.

  1. Feminismo, radicalismo e jihadismo

Quem tenha um mínimo de compreensão pela dinâmica do que se passa no mundo e algum sentido do equilíbrio não pode deixar de constatar que é no jihadismo que se encontra a principal força reacionária contemporânea que tem como timbre o combate os direitos da mulher e que, em consequência, é nos países muçulmanos que os direitos das mulheres são mais atacados.

Isto não nos pode levar a concluir que o Islão é necessariamente uma religião contra os direitos das mulheres. No Curdistão iraquiano, por exemplo, onde o Islão é a religião dominante, a igualdade de direitos para as mulheres é uma preocupação, sendo que existem movimentos islâmicos que fazem da igualdade de direitos para as mulheres a pedra angular da sua política.

Por outro lado, há que entender o radicalismo como algo natural no movimento feminista, como aliás em qualquer outro movimento cívico. Traçar a fronteira entre o que é normal e o que é excessivo nem sempre é fácil e dependerá também do ponto de vista do observador.

É verdade que, como todo o radicalismo, este pode transformar-se num movimento oposto ao que proclama. Nas sociedades democráticas (Alemanha e Índia, por exemplo) há quem defenda o apartheid de género como forma de defender as mulheres, numa lógica em que os homens são por definição agressores.

Esse radicalismo dá assim cobertura à misoginia jihadista que, justamente, tem no apartheid de género a sua imagem de marca, impondo-a em numerosos domínios, nomeadamente nos transportes públicos.

Para os portugueses da geração do 25 de Abril, como eu, que retêm na memória o fim do apartheid de género educacional como um dos seus principais símbolos, isto deveria ser tão evidente que não precisaria de qualquer explicação, mas tendo em conta as acções, declarações e posicionamentos de muitos dos que se reclamam de ‘esquerda’ (e isto vai para lá do Bloco de Esquerda) é essencial recordá-lo.

Aqui, é também importante ter em conta outra característica essencial do Jihadismo (esta baseada na tradição clerical e especialmente refinada entre o clero xiita) que é o princípio da dissimulação, do discurso duplo, da efabulação ou da pura mentira.

Tal como quando da invasão do Iraque, em que a teocracia foi capaz simultaneamente de a provocar e de a denunciar como consequência do pérfido imperialismo americano, também com o feminismo os jihadistas são capazes de fazer longas prédicas a explicar que o que defendem apenas tem como objectivo defender as mulheres, ao mesmo tempo que tudo fazem para as reduzir a uma condição inferior.

Para finalizar, temos que ter em conta a ingenuidade, ou mesmo angelismo, dominante nas nossas sociedades democráticas, e que explica como é possível que um movimento que mobilizou muitos milhões de norte americanas (como eu pude constatar, fundamentalmente oriundas da classe média instruída de origem anglo-saxónica), a marcha das mulheres, fosse dirigido por Linda Sarsour, uma das principais dirigentes no Ocidente do movimento jihadista moderno.

O que nos mostra a história é que, contrariamente ao que nos querem fazer crer, o nazismo impôs-se mais por força dos que o que o queriam apaziguar do que pela fé dos seus partidários; por outras palavras, a ingenuidade fantasiosa foi mais importante do que o fanatismo na materialização da ameaça nazi.

  1. Da transição saudita ao fascismo pintado de vermelho

A Arábia Saudita é um puro fruto da Jihad, sendo que mesmo o nome do país lhe foi dado pelo chefe tribal que se aliou ao clero fanático para conquistar o poder. Juntando o fanatismo religioso à força do dinheiro do petróleo, foi durante muito tempo o coração do reacionarismo mundial.

E isso foi assim até que essa posição começou a ser-lhe disputada pela nova geração jihadista, mais radical que a anterior, que considerou inaceitáveis as concessões da coroa saudita à modernidade.

A Arábia Saudita, ao longo de décadas, foi procurando responder ao desafio do jihadismo moderno com um misto de apaziguamento – cedendo às reivindicações do clero, financiando-as principescamente, apoiando o seu proselitismo e a sua doutrinação fanática – ou rivalizando com ele em fanatismo. Falhou em toda a linha!

A Arábia Saudita desenvolveu-se como uma monarquia feudal com mais de três dezenas de clãs reconhecidos oficialmente (na verdade mais de mil, como me confidenciou um príncipe dissidente que viria a exilar-se e depois a desaparecer) em que a intriga e a disputa interna feita por todos os meios, incluindo o financiamento do jihadismo terrorista, foram a norma.

Com o actual príncipe regente, Mohammed bin Salman (MBS), passámos da monarquia feudal à absoluta. Meteu na prisão ou fez desaparecer todos os que se atreveram a enfrentá-lo; contrariamente aos seus antecessores, não respeitou sequer nenhum poder feudal. Ao mesmo tempo anunciou um conjunto de reformas destinadas a cercear o poder do clero e a sua doutrina jihadista, nomeadamente distanciando-se do racismo anti-Judeu e abolindo as leis mais misóginas do país, como as que estipulam a tutelagem das mulheres ou as que as proíbiam de conduzir.

Enquanto isto, no mundo ocidental, mas em particular nos EUA, e na sequência do movimento nascido da marcha das mulheres a que fizemos referência, aparece um conjunto de protagonistas femininos simbolizado por quatro congressistas democratas (conhecidas por ‘the squad’) que fazem a apologia do racismo antijudeu ou mesmo antibranco (o problema não é a Jihad, é o homem branco, diz uma ex-refugiada da Somália) escondido atrás de um conjunto de propostas de esquerda.

Nestas circunstâncias, é essencial saber distinguir o essencial do acessório e, literalmente, ‘não cair no conto do vigário’.

O jihadismo moderno, em qualquer das suas variantes, seja o da Irmandade Muçulmana do Qatar e da Turquia, seja – muito mais radical e perigoso – o da teocracia iraniana – é o fascismo dos nossos dias.

Por mais maquilhado que ele se apresente com ecologia, igualdade económica, ‘feminismo islamista’, etc. é ele o adversário principal que os verdadeiros antifascistas têm de combater.

Tudo o resto é acessório quando não mesmo ilusório.


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