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Domingo, Novembro 24, 2024

Biografia traz à tona amores e brigas de Mário de Andrade

“Sou trezentos, sou trezentos e cinquenta.” O verso, que inicia o livro de poemas Remate de Males, revela que Mário de Andrade (1893-1945) tinha conhecimento da diversidade de interesses que habitava seu espírito curioso, criativo e complexo.

Mário foi poeta, musicólogo, folclorista, romancista, contista, cronista, crítico de arte, fotógrafo, professor de piano, colecionador de arte, etnógrafo, jornalista, ícone da vanguarda modernista e um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, além de diretor do primeiro órgão cultural do Brasil.

Consciente de seu papel histórico, Mário também foi um personagem único, pioneiro ao pensar a cultura como patrimônio histórico e ao estar à frente de um movimento que soltou as amarras das artes no início do século 20, trazendo para as discussões acadêmicas e para os saraus das elites músicas e danças folclóricas, que antes estavam confinadas aos rincões distantes do país.

Criado entre procissões e ladainhas católicas, deliciava-se com as canções dos rituais de candomblé. Fazia parte de congregações das igrejas do Carmo e de Santa Ifigênia, mas não se negava os desfrutes dos prazeres da carne. Seus interesses iam do sambista Sinhô à arte alemã, da cuia ornada por índios de Santarém ao canto lírico.

O desafio de contar a história desse homem cheio de contrastes coube ao jornalista e escritor Jason Tércio. Fruto de quase uma década de pesquisa, Em Busca da Alma Brasileira (Editora Estação Brasil, 544 páginas, R$ 79,90) traça um perfil minucioso do intelectual e de suas 350 dimensões. Mário teve as duas avós “mulatas”, revela Tércio, também autor de Segredo de Estado – O Desaparecimento de Rubens Paiva, entre outros.

As duas eram primas e de origem pobre, e que, contrariando as expectativas da época, conseguiram certa ascensão social não apenas financeira, mas de respeitabilidade. Para Tércio, Mário teria consciência dessa miscigenação – e este seria um dos motivos de seu interesse profundo pela diversidade cultural brasileira.

Carregando a pecha de esquisitão por ter inclinação para artes e música, desde cedo buscou conciliar a doutrina religiosa católica com seu aprendizado humanístico. Pedia permissão ao arcebispado de São Paulo, por exemplo, para ler livros proibidos pela igreja, como os de Émile Zola (1840-1902). Essa tentativa de unir extremos esteve presente em toda sua obra.

Sua entrada na vida intelectual da cidade de São Paulo e nas rodas da elite é contada em detalhes, assim como ganhou o respeito e a confiança de quatrocentões esclarecidos como Paulo Prado (1869-1943) e dona Olívia Guedes Penteado (1862-1934), conhecidos mecenas e agitadores culturais do início do século passado. Prado e dona Olívia organizavam saraus e encontros de artistas e intelectuais em suas residências, locais importantes de fermentação de ideias modernistas.

Dona Olívia foi uma das responsáveis por levar os modernistas a uma viagem a Minas Gerais para conhecer as igrejas barrocas das cidades históricas e também por convencer Mário de Andrade a acompanhá-la a uma viagem ao Amazonas. As duas viagens fizeram Mário mergulhar no Brasil profundo e descobrir suas riquezas e abandonos, assim como iniciar a coleta de lendas, tradições, poesia oral e música folclórica que marcaria sua obra.

O livro conta detalhes das disputas envolvendo lideranças do movimento modernista e da Semana de 22, introduzindo outros personagens importantes, como Oswald de Andrade (1890-1954), Tarsila do Amaral (1886-1973) e Anita Malfatti (1889-1964) e a dinâmica de suas relações com Mário.

Se o biógrafo tem o cuidado excessivo de contextualizar o cenário histórico dos acontecimentos e seus personagens, muitas vezes o biografado se perde em meio a uma profusão de dados e informações curiosas, mas não tão relevantes, como o menu servido em determinada reunião. De outro lado, muitas vezes não se tem informações sobre o Mário cotidiano.

Apesar de morar a vida toda com a mãe e o irmão, referências ao dia a dia da família são raras. O enfoque nos grandes eventos o torna um tanto quanto frio, partindo de um projeto para outro, de um artigo que precisa escrever para outro, sem a necessária profundidade pessoal e motivações. Talvez a decisão editorial de não comentar sua obra crie alguns vácuos pelo caminho.

Um exemplo são as poucas linhas dedicadas ao Ensaio sobre a Música Brasileira, lançado em 1928 e ainda hoje considerado um marco na musicologia nacional. Em relação ao clássico Macunaíma, também de 1928, ficamos sabendo que o autor cortou trechos considerados “pornográficos” por alguns críticos em edições posteriores.

Intenso missivista, grande parte das opiniões pessoais e do Mário mais sentimental e sensual surge nas cartas trocadas com escritores, artistas, pintores, políticos, poetas ao longo dos anos. Pela primeira vez, detalhes mais concretos são revelados sobre a vida romântica e sexual de Mário.

“Cartas pertencentes ao Instituto de Estudos Brasileiros, onde se encontra o acervo de Mário, revelam que ele teve pelo menos um namorado”, diz Tércio. Identificado apenas como H., os dois parecem ter vivido um grande amor e sofreram ao terem que se separar. Mário também namorou muitas mulheres, o que sugere uma vida sexual agitada e menos tradicional.

Embora avesso à política, Mário aceita em 1935 o convite para chefiar o Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, influenciado pela possibilidade de criar bibliotecas, discotecas, parques e organizar um cronograma cultural para a cidade. Foi assim que conseguiu criar a Missão de Pesquisas Folclóricas, que coletaria músicas e danças regionais do Norte e Nordeste, cujo legado ainda hoje é fonte de pesquisa.

Sua decepção com a política é tão contemporânea que poderia estar acontecendo agora, assim como as indagações e reflexões feitas por ele ao longo da vida. “O Brasil é feio, mas gostoso”, escreveu ele em O Turista Aprendiz, durante sua viagem ao Nordeste em 1928, ao se deparar com o contraste entre a vida simples e a miséria que viu nas regiões. Encantado, sempre sonhou em voltar a morar numa casinha de praia com muros baixos onde os cantadores pudessem entrar e se apresentar. Nunca conseguiu.


Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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