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Sábado, Dezembro 21, 2024

Se o Pardal Henriques é o condestável da democracia, eu sou o Zaratustra

Carlos de Matos Gomes
Carlos de Matos Gomes
Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

Eu desconfio da bondade e da boa-fé dos dirigentes do sindicato dos motoristas de ditas matérias perigosas. Os dirigentes nem são motoristas, nem as matérias que os motoristas do sindicato transportam são perigosas. Ou mais perigosas que tantas outras. Duas mistificações para começar.

Há muito tempo, nas estepes da Ásia Central, nasceu um menino a que os pais deram o nome de Zaratustra. Ao nascer, Zaratustra não chorou; pelo contrário, riu sonoramente. Todo o povo da aldeia se admirou pois nunca tinham visto um bebé rir ao nascer. Onde já se viu rir ao nascer nesse mundo triste e escuro?! Os deuses estão furiosos! O Zaratustra está a rir-se deles.

Ao crescer, Zaratustra deambulava pelas estepes perguntando: Quem fez o sol e as estrelas do céu? Quem criou as águas e as plantas? E quem faz a lua crescer e minguar? Quem implantou nas pessoas a dúvida sobre a bondade das pessoas?”.

Eu desconfio da bondade e da boa-fé dos dirigentes do sindicato dos motoristas de ditas matérias perigosas. Os dirigentes nem são motoristas, nem as matérias que os motoristas do sindicato transportam são perigosas. Ou mais perigosas que tantas outras. Duas mistificações para começar.

A doutora Raquel Varela, de quem sou amigo e por quem tenho muita estima, defende a bondade deles. Mais, defende que eles são meus defensores e escreve no Público que a democracia em Portugal está a ser defendida pelos motoristas reunidos num sindicato de motoristas de camiões cisterna de combustíveis, a que atribuíram de moto próprio a categoria exclusiva de matérias perigosas. Na realidade a categoria de matérias perigosas abrange mais cargas, desde a água ao transporte de animais, de ar líquido a ácidos, de farinhas a caixas de bebidas. Até o lixo é matéria perigosa. Estes motoristas e os seus padrinhos apenas identificam os combustíveis como matérias perigosas porque são os combustíveis que lhes permite perturbar a vida da sociedade, de causar danos económicos e sociais de forma rápida e com resultados garantidos. Como os faquistas sabem onde espetar o punhal. Adiante, porque a defesa da democracia é um ato sério, praticado por gente séria. Não é o caso dos dirigentes deste sindicato erigidos pela doutora Raquel Varela em condestáveis da democracia. Alguém os viu em algum ato de defesa da democracia, numa eleição democrática, na defesa de saúde ou educação pública? Na luta pelos direitos de minorias? Na defesa de uma causa como a da paz, ou do ambiente?



Assim: O vice presidente do sindicato da defesa da democracia é o advogado Pardal Henriques, de recente formação jurídica, em 2017, investigado pelo MP por burla a um investidor francês, e também pela Ordem dos Advogados,  que abriu uma investigação a Pardal Henriques, pelo o facto de o advogado pertencer a uma firma de mediação imobiliária desde 2007, algo que é proibido aos advogados. Em resumo, um sindicalista motorista sem carta profissional, defensor da democracia, que já foi empresário de consultoria de gestão e saúde, com tanto sucesso e lisura que foi inibido de administrar bens de sociedades comerciais ou civis, associações ou fundações privadas de actividades económicas, empresas públicas e cooperativas durante sete anos, depois de ser sentenciado por insolvência culposa. Este é o vice-presidente do sindicato que defende a democracia em Portugal!

O presidente é o empresário Francisco São Bento, proprietário da Transportes Francisco São Bento Lda, dissolvida e liquidada em Novembro de 2017 e de que não se conhece nem trabalho assalariado, nem tradição de luta sindical, ou política. É o emplastro que surge nas fotografias ao lado do doutor Pardal Henriques.

Nem ao dito vice presidente Pardal Henriques, nem ao dito presidente do sindicato Francisco São Bento são, pois, conhecidas anteriores intervenções sindicais, de ordem cívica, política, ou cultural. São dois arrivistas, de passado obscuro e de presente suspeito. Quem está por detrás deles? Uma estudiosa dos movimentos sociais acredita em salvadores saídos do nada? Nem a Joana d’ Arc, o foi. Nem qualquer dos revolucionários franceses, nem russos. Todos os protagonistas de movimentos sociais tinham uma história. Até os relâmpagos têm uma causa, uma origem conhecida. Estes dois salvádegos da democracia não, saíram do ovo e logo se transformaram em serpentes! Ora é a estes dois neófitos da luta sindical e da luta cívica e política que Raquel Varela atribui a defesa da democracia! E tantos homens e mulheres dignos foram torturados, presos, exilados, assassinados por lutarem pela democracia e afinal era tão fácil e rápido!

Por mim, não só dispenso a participação destas duas sombrias figuras na defesa da democracia – devemos temer defensores sem história – como, no caso de a defesa da democracia lhes ser entregue, declaro que estarei contra, a sério. Se a Raquel Varela pretende que estes dois “sombras” sejam defensores da democracia, eles que se apresentem a eleições. Apesar de tudo foi o que fizeram o Bolsonaro e a sua camarilha, ou o Salvini. Mas mais, se a democracia for entregue ao Pardal, ao Francisco São Bento e à sua tropa de choque, após esta heróica luta de camiões cisterna de gasolina e gasóleo (que não é inflamável, já agora), de desestabilização social, de falsidades e de nuvens escuras, até de ridículo, eu vou reactivar a licença de uso e porte de arma e reunir quem se lhes oponha e os desmascare.

Como chega uma reconhecida estudiosa dos movimentos sociais ligados ao trabalho à conclusão que um grupo tão suspeito e de origens tão propiciadoras de suspeição é um reduto de defesa da democracia e dos direitos dos cidadãos numa sociedade livre e solidária? Tenho uma explicação tão pouco científica quanto a metodologia das ciências sociais me permite: A identificação do cientista social com o objecto da sua investigação e trabalho, uma atitude semelhante ao conhecido síndrome de Estocolmo que leva as vítimas a aderir intelectual e sentimentalmente ao  agressor.

Quem se envolve neste tipo de análise social estabelece premissas que, em vez de colocar em causa as certezas de partida, as teses, e se distanciar para as observar materialisticamente, as toma como verdades assumidas que só poderão ser confirmadas. Ao colocar-se intelectualmente do lado do trabalho e as lutas pela melhor repartição de justiça social, o analista passa a atribuir ao trabalhador todas as virtudes só pelo facto de o ser. Pode ser uma posição moral, mas não é uma posição científica.

O analista social coloca-se na posição do publicitário que originou o slogan: Se é Bayer é bom! Se é trabalhador é bom! A estatuária dos estados socialistas do século passado é exemplar desta deificação do trabalhador, a literatura e o cinema do neo-realismo são outros bons exemplos. Nesta visão idílica o trabalhador é sempre um herói, um fermento de progresso e de futuro radioso. A frase do Manifesto Comunista: proletários de todo o mundo uni-vos!  é tomada no sentido literal e como dogma de fé, fora do circulo da razão. Assume que se os proletários se unirem a sociedade se torna ideal, acaba a exploração do homem pelo homem! Sabemos hoje que não é nada assim. Que a primeira questão é a da finalidade da união. Unir para quê?

Curiosamente este sindicato do doutor Pardal, içado a defensor da democracia, não só investe na desunião, mas explora ainda o mais feroz egoísmo: estes motoristas de camiões de combustíveis não são pelos proletários uni-vos, são por nós, os motoristas de combustíveis, eles não querem justiça e equidade, querem sacar o seu deles, tratar da sua vidinha e que os outros se danem e tratem da deles. Chama-se a isto a democracia da mafia: um bando impõe a sua lei e arrecada o lucro! É essa que defendem!

Mais, muitos estudiosos desta área da relações dos elementos de uma sociedade, onde Raquel Varela parece inserir-se, partem do principio que as lutas dos trabalhadores são autónomas quer da política no sentido restrito – os assuntos da polis, as questões nacionais – quer da política em sentido lato, o que habitualmente se designa por geoestratégia (um conceito com má carga histórica e hoje pouco utilizado), isto é, das relações de força entre as grandes potências pelo domínio do planeta e dos seus recursos. Sem ingenuidades académicas: as lutas sindicais fazem parte do arsenal das guerras entre estados e para o domínio de superpotências. São pedras de um xadrez de poder, como são a manipulação das opiniões públicas, os boicotes económicos, a espionagem de dados electrónicos, entre tantos outros. A greve deste sindicato ad hoc, feito ao microondas, ou de uma Bimby, pode muito bem ser um instrumento de uma estratégia muito mais vasta. Um dia saberemos. Antes convinha, por prudência, não classificar o doutor Pardal Henriques e os seus apoiantes de cavaleiros da liberdade e da democracia. Os combatentes da liberdade – freedom fighters – inventados e incensados por Reagan nos anos 80 do século passado afinal eram talibãs e alquaedas financiados pelos Estados Unidos!

Os estudiosos dos movimentos sociais, normalmente criados em estufa, idealizam grupos como elementos de um modelo de cadeia de produção que eles criaram, e enquadram-nos em estereótipos. Os modelos sociais são representações muito falíveis da realidade e ignoram o saber da vida, uma outra forma de empirismo mas que merece ser levada em conta. A minha avó, uma mulher que aos dezoito anos saiu dos Açores para os Estados Unidos, que foi recolhida na ilha Ellis, que atravessou a América de Providence à Califórnia para ir ter com o homem com quem casou, que viveu nas terras do Oeste, no Vale de São Joaquim, dizia que mais valia um ano de tarimba que cem de Coimbra. Pese embora o exagero e a necessidade do estudo sério e profundo, convém dar também atenção às vozes de pessoas como a minha avó Honorina e até à do Padre Américo, o fundador da Obra do Gaiato, de quem  terá ficado apenas a primeira parte da frase em que ele apreciava os jovens recolhidos e de quem desconhecia o passado: «Não há rapazes maus». Ficou censurada a última parte: O que há é muito filho da mãe.

Os estudos sociais deviam tomar em consideração os filhos da mãe, porque eles existem e não são todos burgueses e aristocratas. Deve até haver sindicatos e uma ordem deles.


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