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Sábado, Dezembro 21, 2024

A poesia visceral de Sávio de Araújo

Jovem carioca publica livro de poemas que transita entre os temas da subjetividade, a reflexão sobre a linguagem, o amor e o tempo presente, com notável domínio verbal.

Carne da Era, livro de estreia do jovem poeta carioca Sávio de Araújo, reúne no título um termo concreto (carne) e um abstrato (era) numa insólita metáfora que resume alguns dos temas que encontraremos ao longo da leitura do volume: o fluir temporal, a gramática do corpo e das sensações, mas sobretudo a carnadura das palavras, o próprio poema elaborado como se fosse um organismo, mais do que um maquinário.

A fusão entre metalinguagem cabralina e subjetividade está presente, por exemplo, na composição intitulada Palavra:

“Sigo o método da dor
e faço da palavra
uma antiga opressão.

Desperto
a raiz tempestuosa que cresce
no tempo da escrita

Deixo-a destruir
sonhos inúteis
que lutam por nomes,
pois serei agora
um mar intransponível,
o signo infinito
de idiomas mortos
na língua improvável
de cada palavra”.

A concepção da poesia como algo orgânico, visceral, atravessa toda a poesia de Sávio, que não faz economia de referências a plantas, insetos, animais e peixes, reelaborados como seres semânticos, signos vivos de um pequeno planeta textual, concebido “com a sua própria fauna e flora”, como queria o poeta chileno Vicente Huidobro. Na peça intitulada Gérmen, lemos estas linhas:

“Sob o sol, acaricio a folhagem
como pelo nas costas de um animal,
a existência está viva
ruminando números e palavras.
Essa fertilidade
é adubo virando terra.

E quem, afinal, tem coragem
de ser o próprio alimento?
Criar raízes que respirem como guelras”.

Sem dúvida, estamos diante de um poeta com plena consciência das possibilidades plásticas e musicais da arquitetura poética; um autor que traduz o seu mundo interior e a reflexão sobre aquilo que o cerca sem abdicar da beleza, das mutações do verso, de suas sutilezas e cintilações. Sávio, que além de poeta é músico, está atento aos timbres e às cores das vogais, como queria Rimbaud, em sua Alquimia do Verbo: a dimensão logopaica, a “dança do intelecto entre as palavras”, comparece aqui, mas não como discurso filosófico, e sim como partitura e pintura. Assim, por exemplo, neste breve poema, dividido em três quartetos, intitulado Afirmação:

“Meditarei os dias
nessa terra aberta
pela saudade sua.

Engolirei a água
em fontes primitivas:
jorro sem partida.

Onde quer que esteja
levantarei meu corpo
sob o sol do sim”.

A temática lírica, porém, é a que se impõe, no conjunto dos poemas, não apenas pelo número maior de textos que tratam do amor, mas sobretudo pela abordagem, que evita a facilidade inerente ao tema. Temos aqui peças onde o amor se corporifica na linguagem, na materialidade semântica, em toda a sua sensualidade imagética e sonora:

“Tua alma estranha
grita dentro de mim.

És agora um livro nunca lido
com a face de nosso destino
e tudo que nele consta
é o futuro dessa vontade”

(A Espera dos Amantes);

 

“Luz da noite,
prata azul lunar
nas caudas negras de teu rosto.

Fendas cintilantes
entremeiam nossos atritos.
Músculos, fibras tesas,
gestos cálidos, líquen.

Somos agora a justificativa para o acaso que nos une”

(Neblina);

 

“Tua beleza,
cavalo em fuga que sigo de longe.

Teus olhos,
traços da liberdade
em bordas escuras”

(Rara);

e sobretudo nesta belíssima composição:

“Tu ainda não existes
mas lembro de ti
todos os dias.

Ouço teu nome
em sussurros frágeis
na boca do tempo.

Esperarei em mim
como a pantera
rondando o vazio”

(Distância).

Para além do lirismo, a consciência do tempo presente é outro vetor essencial no livro de estreia de Sávio de Araújo, a começar pela impactante composição que dá título ao volume:

“Sou eu os esquecidos,
carne da própria era, corpos cicatrizados
pelo sal da insurgência.

Uma vida entregue
a desmerecimentos,
espelhos estranhos
e duplos insensíveis.

Nossas horas:
chacinas esdrúxulas
na tediosa aurora
de homens comuns.
Soam ledos os enganos
que nos encurralam,
em todos os fins
vejo o triunfo da obra.

E os séculos se tornam
a passagem das bocas
repetindo tais feitos
nos lugares onde falam”

(A Carne da Era).

 


A Carne da Era

Primeiro Livro de estreia do jovem poeta carioca Sávio de Araújo

 


por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG   | Texto original em português do Brasil

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