Jovem carioca publica livro de poemas que transita entre os temas da subjetividade, a reflexão sobre a linguagem, o amor e o tempo presente, com notável domínio verbal.
A Carne da Era, livro de estreia do jovem poeta carioca Sávio de Araújo, reúne no título um termo concreto (carne) e um abstrato (era) numa insólita metáfora que resume alguns dos temas que encontraremos ao longo da leitura do volume: o fluir temporal, a gramática do corpo e das sensações, mas sobretudo a carnadura das palavras, o próprio poema elaborado como se fosse um organismo, mais do que um maquinário.
A fusão entre metalinguagem cabralina e subjetividade está presente, por exemplo, na composição intitulada Palavra:
“Sigo o método da dor
e faço da palavra
uma antiga opressão.Desperto
a raiz tempestuosa que cresce
no tempo da escritaDeixo-a destruir
sonhos inúteis
que lutam por nomes,
pois serei agora
um mar intransponível,
o signo infinito
de idiomas mortos
na língua improvável
de cada palavra”.
A concepção da poesia como algo orgânico, visceral, atravessa toda a poesia de Sávio, que não faz economia de referências a plantas, insetos, animais e peixes, reelaborados como seres semânticos, signos vivos de um pequeno planeta textual, concebido “com a sua própria fauna e flora”, como queria o poeta chileno Vicente Huidobro. Na peça intitulada Gérmen, lemos estas linhas:
“Sob o sol, acaricio a folhagem
como pelo nas costas de um animal,
a existência está viva
ruminando números e palavras.
Essa fertilidade
é adubo virando terra.E quem, afinal, tem coragem
de ser o próprio alimento?
Criar raízes que respirem como guelras”.
Sem dúvida, estamos diante de um poeta com plena consciência das possibilidades plásticas e musicais da arquitetura poética; um autor que traduz o seu mundo interior e a reflexão sobre aquilo que o cerca sem abdicar da beleza, das mutações do verso, de suas sutilezas e cintilações. Sávio, que além de poeta é músico, está atento aos timbres e às cores das vogais, como queria Rimbaud, em sua Alquimia do Verbo: a dimensão logopaica, a “dança do intelecto entre as palavras”, comparece aqui, mas não como discurso filosófico, e sim como partitura e pintura. Assim, por exemplo, neste breve poema, dividido em três quartetos, intitulado Afirmação:
“Meditarei os dias
nessa terra aberta
pela saudade sua.Engolirei a água
em fontes primitivas:
jorro sem partida.Onde quer que esteja
levantarei meu corpo
sob o sol do sim”.
A temática lírica, porém, é a que se impõe, no conjunto dos poemas, não apenas pelo número maior de textos que tratam do amor, mas sobretudo pela abordagem, que evita a facilidade inerente ao tema. Temos aqui peças onde o amor se corporifica na linguagem, na materialidade semântica, em toda a sua sensualidade imagética e sonora:
“Tua alma estranha
grita dentro de mim.És agora um livro nunca lido
com a face de nosso destino
e tudo que nele consta
é o futuro dessa vontade”(A Espera dos Amantes);
“Luz da noite,
prata azul lunar
nas caudas negras de teu rosto.Fendas cintilantes
entremeiam nossos atritos.
Músculos, fibras tesas,
gestos cálidos, líquen.Somos agora a justificativa para o acaso que nos une”
(Neblina);
“Tua beleza,
cavalo em fuga que sigo de longe.Teus olhos,
traços da liberdade
em bordas escuras”(Rara);
e sobretudo nesta belíssima composição:
“Tu ainda não existes
mas lembro de ti
todos os dias.Ouço teu nome
em sussurros frágeis
na boca do tempo.Esperarei em mim
como a pantera
rondando o vazio”(Distância).
Para além do lirismo, a consciência do tempo presente é outro vetor essencial no livro de estreia de Sávio de Araújo, a começar pela impactante composição que dá título ao volume:
“Sou eu os esquecidos,
carne da própria era, corpos cicatrizados
pelo sal da insurgência.Uma vida entregue
a desmerecimentos,
espelhos estranhos
e duplos insensíveis.Nossas horas:
chacinas esdrúxulas
na tediosa aurora
de homens comuns.
Soam ledos os enganos
que nos encurralam,
em todos os fins
vejo o triunfo da obra.E os séculos se tornam
a passagem das bocas
repetindo tais feitos
nos lugares onde falam”(A Carne da Era).
A Carne da Era
Primeiro Livro de estreia do jovem poeta carioca Sávio de Araújo
por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG | Texto original em português do Brasil
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