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Quarta-feira, Julho 17, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

A Carranca.

A Carranca é um lago grande cheio de peixes vermelhos. Murado com grandes pedras de granito cortadas a preceito, tem uma forma elegante e a água sempre correndo, ou das duas bocas laterais onde se podem encher as bilhas ou da boca central da escultura que lhe dá o nome, e transmite luz, som e cor.

A luz do céu brilha na superfície da água, o rumorejar do movimento canta música, a sombra das árvores circundantes traça desenhos por entre as nuvens que passam.

A escultura de granito, uma mulher, poderia ter sido figura de proa de um barco pesqueiro na Grécia antiga.

Aqui vem a Tizinha dar de comer aos peixes_traz um saquinho com hóstia que lança desfeita aos bocadinhos e os cautelosos vermelhinhos esquecem a habitual timidez a abrem as bocas quase brancas e engolem, ávidos, o petisco.

É um lugar sossegado, ladeado de pesados bancos de pedra, assentes em pernas torneadas. Um local para pensar sem ser interrompida. E a Tizinha tem muito em que pensar.

Gosta muito de ler. Também gosta muito de ouvir as histórias da Ama Helena que as conta enquanto debulha ervilhas ou corta cebola e salsa para os temperos dos cozinhados.

Dentre todas as histórias há as que fazem estremecer de quase medo, há as que fazem sonhar com os tempos em que os animais falavam.

A Ama é dramática ao contar por exemplo a tragédia da Ponte das Barcas. Num rio com corrente forte e por vezes ventos afunilados, havia uma ponte feita de barcaças ligadas umas às outras. E todos os que precisavam de atravessar o rio para irem e voltarem dos seu afazeres, compras e recados, foram um dia engolidos pelas águas, quando as embarcações começaram a cair soltas umas atrás das outras tal e qual um dominó desconjuntado.

– Todos? -perguntava a Tizinha sempre na esperança de que a Ama se lembrasse ao menos de um que se tinha salvo das águas.

A Ama respondia:

– Salvo das águas foi o Moisés, não te contei no outro dia?

A menina dizia sim, e perguntava:

– Conta lá outra vez, como era a roupa da princesa egípcia que  encontrou o bebé na cestinha dentro de água?

– Tizinha, então tu interessas-te mais pela roupa da princesa do que pelo menino que no rio boiava?

A menina hesitava. Sabia a continuação da história e sabia que a princesa, filho do faraó do Egipto tinha adotado o bebé e muito bem o tratara. Mas gostava de ouvir a Ama a contar do vestido de linho branco bordado com pérolas e que tão bem se moldava ao corpo da princesa.

– Mas tu estavas lá quando as barcas todas se afundaram?

A Ama suspirava e voltava a contar:

– Eu não estava lá, quem contou foi a minha trisavó, que depois contou à minha avó e por ai fora até andar à nora, como te estou a contar a ti agora!

– Tu disseste que as pessoas se atiraram pela ponte fora para fugirem às tropas dos franceses, não foi? Afinal queriam fugir das espingardas inimigas e morreram afogadas! _ comentou a menina Tizinha ainda perplexa com a atividade daquelas pessoas que mais lhe pareciam as formigas da história em que criticam a alegria das cigarras. Tal como as formigas seguem sempre umas atrás das outras pelos carreirinhos que as mais velhas desenharam, assim os tripeiros tinham caído na cilada.

Ora aí está! Os tripeiros! Que nome mais engraçado. A Ama tinha contado que os habitantes da cidade do Porto tinham oferecido toda a carne  de que dispunham ao Infante Dom Henrique para ele poder armar os barcos que iam partir para Ceuta, do outro lado de um mar que se chamava Mar do Meio, assim afirmava a Ama, doutorada em história e histórias de encantar. Tinham oferecido a carne e tinham escolhido comer apenas as tripas dos animais. A Tizinha achava que as tripas seriam assim como alheiras e chouriços, de que muito gostava, e portanto o sacrifício dos habitantes do Porto não tinha sido assim nada digno de se lhe levantar uma estátua.

– Debruçou-se sobre a água do tanque. Viu a sua própria cara que o cabelo muito liso emoldurava.

E murmurou para si mesma:

– Ceuta, que lindo nome! E ficou a pensar se Ceuta poderia ser um nome de menina! se um dia encontrasse a sua própria filha a navegar numa cestinha do rio e a salvasse, o nome dela seria esse.

 

Ilustrações de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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