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Quarta-feira, Julho 17, 2024

Costa e a Sua greve

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Uma greve com “pose”

A greve por tempo indeterminado nos transportes rodoviários de mercadorias marcada para 12 de Agosto de 2019 e assumindo expressamente a intenção de criar impactos em toda a economia em período pré-eleitoral foi anunciada com um mês de antecedência e precedida por um ensaio geral em Maio, facilitando uma resposta totalmente preparada pelo “Chefe do Governo”, como lhe costuma chamar o Diário de Notícias, que cuidou de

  • declarar preventivamente uma situação de crise energética, ficção legal que assim foi pela primeira vez  testada;
  • activar mais uma vez a célula anti-greve da Procuradoria – Geral da República;
  • oferecer uma via de escape aos sindicatos através do ministro que tinha desbloqueado a situação na crise anterior, consistindo essa via no recurso a  um mecanismo – mediação – gerido por outro ministro;
  • definir com grande precisão os serviços mínimos relacionados com a distribuição de combustíveis;
  • activar uma requisição civil por zonas e sectores;

Permitindo também ao “chefe” gerir as suas intervenções de forma a aparecer  numa pose “de Estado” antes do início da greve, deixar aos ministros os aspectos menos simpáticos dos conflitos do dia a dia desta, e reaparecer depois da sua cessação.

Pessoalmente não me chocou esta gestão do conflito, tanto mais que visava responder a uma estratégia que se baseava declaradamente no envolvimento do poder politico e na exploração da  falta de capacidade de resposta deste, mostrada anteriormente, e que pelo menos a nível do discurso produzido, foi expressamente afastada  a possibilidade de revisão da lei da greve, sendo o já esperado recurso à requisição civil activado de forma gradual.

Certamente que importa discutir até que ponto fazia sentido definir serviços mínimos que em alguns casos correspondiam, como não deixou de ser dito, a “serviços máximos”, mas há um aspecto que importa clarificar que é o de saber se os sindicatos que decretam uma greve para a qual foram definidos serviços mínimos, são ou não apenas responsáveis pelo destacamento de trabalhadores para os serviços  que não possam ser assegurados por não aderentes.  Aparentemente neste caso muitos dos aderentes à greve tiveram de cumprir serviços mínimos, ou por a adesão ser elevada, ou por as empresas terem feito uma definição de escalas abusiva.

No meu entender houve dois pontos em que o Governo não esteve bem:

  • na afirmação de Costa de que não faria sentido recorrer à greve quando já estavam prometidos aumentos para 2020, o que demonstra que quem fez quase toda a sua vida na política, com uns intervalos num escritório de advocacia, tende a ter uma visão miserabilista das questões profissionais (como o confirma a contraposição em declarações posteriores das carreiras comuns da função pública às carreiras especiais) apesar de até ter passado para a  opinião pública  que os motoristas estavam afectados por injustiças crónicas que requeriam um esforço sustentado de correcção;
  • na não definição da compensação a oferecer pelo Estado às áreas de serviço que foram incluídas na rede de postos de abastecimento prioritários.

Um lobby anti – greve no Partido Socialista

O Partido Socialista está suficientemente enredado nos negócios ou cioso do bom comportamento das estatísticas económicas para que vozes partidárias ou até governativas colocadas perante greves “inconvenientes” para certos interesses  comecem a confundi-los com interesses nacionais, a atacar o próprio direito à greve, a apoiar a definição de serviços mínimos e até a aventar  o recurso à  requisição civil, em matérias em que a própria organização e funcionamento actuais da economia os excluem e que de resto, nada têm a ver com “necessidades sociais impreteríveis”.

Uma das vezes em que tal sucedeu na legislatura que está a findar foi a propósito da greve de um dia marcada para a Auto Europa pelo SITE/CGTP, em que se chegou a falar de requisição civil  (ir-se-iam produzir automóveis sob a direcção do Estado, uma espécie de Trabant português ?), se não a empresa fechava, perdiam-se os postos de trabalho, etc., etc. Nas autárquicas de 2017 Assunção Cristas, Maria Luís Albuquerque, Ana Catarina Mendes crucificaram, obviamente, o PCP. António Chora, que se reformara, via a sua “herança” devastada e Joana Mortágua elogiava a “democracia operária” da Volkswagen. Reagi na altura nas minhas “Notas a propósito da greve na Auto Europa” contra esta convergência de críticas.

A seguir foi a greve dos estivadores do Porto de Setúbal, que nem sequer contrato de trabalho tinham com a empresa, mais uma vez objecto de maldições, até porque dificultava a exportação de carros da Auto Europa – que continuaram a ser fabricados mas só foram exportados em 2019, desorganizando as estatísticas de 2018 – comprometendo a viabilidade do Porto de Setúbal (a do Porto de Lisboa estava já condenada, lembram-se ?) e onde era ridículo impor serviços mínimos a quem não tinha contrato embora a requisição civil de gente que soubesse operar os equipamentos fosse teoricamente possível. Numa economia quase completamente privatizada e com uma estrutura de governo em que as empresas públicas estão tuteladas por outros ministros,  o Ministro da Economia serve para “mandar bocas” e  Pedro Siza Vieira lá foi dizendo mal das greves, mas Ana Paula Vitorino, depois de a polícia sob as ordens do marido ter ido proteger um carregamento de automóveis (que à chegada à Alemanha teve uma “recepção” pelos estivadores locais) lá apostou noutro modelo e o processo saldou-se num sucesso para o SEAL. Aliás a Auto-Europa aproveitou, com inteira lógica e dentro da lei, para testar o envio através de outros portos dos automóveis produzidos.

Pedro Siza Vieira esteve notoriamente calado – talvez mesmo silenciado – na recente crise dos transportes, que evidentemente nada tem a ver com a economia portuguesa, no entanto Rosália Amorim, responsável pelo “Dinheiro Vivo” do Diário de Notícias, foi a voz da abordagem anti-greve na comunicação social “Hoje assistimos a posições extremadas, de uma entidade independente dos grandes sindicatos, semelhantes às que conhecemos nas greves da Autoeuropa e dos estivadores”. Aliás com inteira má fé, porque na Auto-Europa o SITE, que declarou a greve, é um dos sindicatos nucleares da CGTP, e o SEAL no caso de Setúbal não actuou como um sindicato com posições extremadas, mas sim como um sindicato com princípios, que defende todos os trabalhadores – efectivos  e precários – tal como tinha já  feito em Lisboa e continua a fazer nos restantes portos.

Se se tivesse ficado pela resposta à greve dos combustíveis, talvez se pudesse dizer que esta  tinha sido adequada, proporcional e respeitadora dos limites da lei, mas há outros interesses no  país que pesam muito no Partido Socialista, designadamente os ligados ao cluster vistos gold-imobiliário-turismo- low cost. A definição de serviços mínimos para certos voos da Ryanair – muito agressiva em termos laborais (chegou a pedir à União Europeia a proibição de realização de greves por parte dos controladores aéreos) e incumpridora do Código do Trabalho português – a qual nada tinha a ver com a satisfação de necessidades sociais impreteríveis, foi uma prenda que nada  justifica e que tem de ser vista como uma provocação.

Requisição civil

A comunicação social tem vindo a insistir em que o Decreto-Lei que regula a requisição civil foi aprovado por um Governo Provisório, presidido por Vasco Gonçalves e promulgado por um Presidente não eleito, Francisco da Costa Gomes, estranhando a sua estabilidade. Em textos de  opinião  falou-se de um diploma “pré-constitucional” ou mesmo, na formulação de Fernanda Câncio, “pré-constitucional e pré-democrático”, dando a entender que lhe faltaria legitimidade democrática.

Na minha visão, porém, este diploma do Ministério da Defesa Nacional, assinado  também por António de Almeida Santos – Francisco Salgado Zenha – José da Silva Lopes – Emílio Rui da Veiga Peixoto Vilar – José Augusto Fernandes – José Inácio da Costa Martins – Maria de Lourdes Pintasilgo, cuja génese e data de aprovação em Conselho de Ministros não estão evidenciadas no preâmbulo e que visa substituir legislação anterior não especificada,  promulgado em 23 de Outubro de 1974 e publicado quase um mês  depois, viu a luz do dia quando António de Spínola já tinha renunciado ao cargo de Presidente da República e os generais Jaime Silvério Marques, Diogo Neto e Galvão de Melo haviam sido afastados da Junta de Salvação Nacional, e em que o III Governo Provisório  apoiado por PS, PSD, PCP e MDP ,  resultava de um contexto democrático.  Aliás o decreto-lei em causa não visa expressamente fazer face a greves, ou chamar ao trabalho grevistas, e, denotando algum aprimoramento de redacção, não deixa de garantir os interesses dos particulares.

Não posso excluir que o diploma tenha começado a ser preparado ainda sob o Governo Provisório anterior, para emparelhar com a lei da greve então promulgada por Spínola e que não só sujeitava a greve a fortíssimas restrições- no que parece ter sido uma transposição do quadro legal da Republica Federal Alemã – mas também permitia o lock-out. Em todo o caso, contextualizando a sua publicação, não posso deixar de chamar a atenção para que dias depois era publicado o diploma assinado por Vasco Gonçalves, José da Silva Lopes e Rui Vilar que permitia a intervenção do Estado na gestão de empresas privadas e foi utilizado em centenas de casos. O diploma relativo  à requisição civil, cabe vincá-lo, admite  que, decidindo-se esta, sejam  nomeadas comissões directivas para as empresas ou que as administrações destas permaneçam em funções. Como nunca terá sido utilizada a primeira possibilidade, a requisição civil de pessoal de empresas privadas, como sucedeu na greve dos motoristas, faz lembrar a legislação que no ultramar português colocava os indígenas à disposição dos contratadores de  mão de obra. Mas isto não é uma consequência da lei de 1974, é um resultado da forma como, num contexto de progressiva privatização da gestão da economia, os governos “democráticos” a  vêm aplicando.

Mate! Mate!

O Ministro do Ambiente e Transição Energética (MATE), Matos de seu nome, já havia anunciado ir processar no próximo mês de Setembro os idosos “resistentes” no prédio Coutinho pelo valor  dos encargos  originados pela subsistência da Vianapolis.

Coube-lhe agora fazer, com um toque de drama, a contabilização diária das presumíveis infracções aos serviços mínimos e à requisição civil, acompanhando as situações em que a GNR foi buscar a casa os presumíveis infractores  e lhes deu a escolher entre o sentarem-se ao volante e o julgamento (sumário?).

Direi apenas que me parece perigoso confiar a gestão de dispositivos de excepção a indivíduos pouco tolerantes, excitáveis e sem uma sólida preparação jurídica.

 

Chamemos assim, atendendo à orientação da doutrina que vem expendendo ao longo de anos, ao Conselho Consultivo da Procuradoria – Geral da República, em que participam também juristas externos, ao qual  os Governos, apesar de disporem já de estruturas próprias na Presidência do Conselho de Ministros, continuam a recorrer, reservando-se o direito de homologarem ou não os seus  pareceres.

Na ausência da possibilidade de publicar Portarias de Regulamentação do Trabalho, aliás o  antigo Secretário de Estado do Trabalho Vítor Ramalho teve ocasião de recordar à comunicação social como este instrumento lhe permitiu gerir os conflitos laborais no tempo do Governo do Bloco Central.

Declaração de interesses: sendo o feliz proprietário de um veículo híbrido receava menos as dificuldades de reabastecimento deste do que uma quebra da circulação de mercadorias em geral, sobre a qual a comunicação social nunca fez previsões precisas.

No actual quadro legal podem aderir a uma greve trabalhadores que não são sócios do sindicato que decreta a greve ou até que são sócios de outros sindicatos e nada obriga os sócios de um sindicato a aderir a uma greve que este decrete, e não é exigível que se registe previamente a intenção de fazer ou não greve, aliás quando as entidades patronais pretendem inquirir previamente os trabalhadores tal é geralmente denunciado como forma de pressão.

Julgo que António Costa já era Secretário de Estado de António Guterres quando Marçal Grilo negociou um acordo de legislatura para a revisão das remunerações das carreiras docentes do ensino superior e das carreiras de investigação científica.

Notas a propósito da greve na Auto Europa, 6 de Setembro de 2017

“Legitimidade ou radicalismo ?”, Diário de Notícias, 7 de Agosto de 2019.

Decreto-Lei nº 637/74, de 20 de Novembro.

“Requisição Civil ou Lei Marcial ?”, Diário de Notícias, 17 de Agosto de 2019

No III Governo Provisório, por força do DL 516/74, as pastas da Defesa e da Comunicação Social passaram a ser geridas pelo Primeiro Ministro, brigadeiro Vasco Gonçalves. No entanto sob o I e II Governos Provisórios, sendo Presidente da República o general Spinola, o Ministro da Defesa foi Mário Firmino Miguel.

Decreto-Lei nº 392/74, de 27 de Agosto.

Decreto-Lei nº 660/74, de 25 de Novembro.


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