Estas memórias são uma manta de retalhos, um apertado colorido.
Chegam-me como postais, este hoje de Odemira. Foi o ano de 75, da reforma agrária, das Unidades Coletivas de Produção, do Serviço Médico à Periferia.
Um dia, fins de Novembro, corremos a Beja, ao Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas. Havia perigo no ar.
No carro íamos cinco. Dois éramos médicos e levávamos connosco três camaradas que trabalhavam em UCP’s da Reforma Agrária. Iam para uma reunião, na nossa boleia, na nossa companhia e na nossa solidariedade ativa.
Na volta já escurecia e eu tinha fome. Ingenuamente pensei que depois da reunião poderíamos jantar numa tasquinha em Beja. Mas os camaradas queriam lá saber de jantares. Não havia tempo a perder. Tínhamos de voltar.
– Deixa, camarada Beatriz. Aí a meio do caminho temos de parar no Xico da Portelinha. Ele alguma coisa nos há-de arranjar para cearmos.
Lá fui eu, embalada no carro, na esperança de ceia que o meu estômago reclamava. Discutia-se a orgânica das UCP’s, as táticas da reação,o destempero dos agrários,os caminhos trilhados pelo MFA. Eu com um pé na Revolução e um aperto no peito habituado a horas certas de almoço e de jantar. O meu filho tinha ficado na vila. Tinha quatro meses e quem dele cuidava nestas noites de vida noturna complicada era a freira responsável pelo infantário!
A Irmã adorava o meu filho. Quando eu lho deixava lá a dormir, o que era um segredo nosso, pois tal despautério a Ordem não permitia, ao passar-lho do meu colo apressado para o dela a Irmã sorria, sorria enlevada como uma Mãe e dizia:
-É o único homem que pode dormir connosco aqui!!
E eu seguia descansada! O meu filho protegido!
Paramos no Xico da Portelinha: o camarada surpreso, encantado de nos ver, a puxar o boné para trás, atarantado nas voltas da ceia que lhe pedimos. Tinha saído da cama, pois não tinha eletricidade e a candeia ainda estava acesa.
Havia lume de chão,uma panelinha de ferro. Sentámos a discutir à volta da mesa que de tão baixinha parecia de brincar. O nosso anfitrião tirou meio pão de centeio de um saquita de pano. O meu estômago parou de doer e o coração começou-me a apertar ainda mais. Aquilo era o pão que ele tinha para a semana, e nós íamos comê-lo!
Estava tanto frio! Ele destapou a panela e cheirava bem. Os fajanitos lá estavam. Saborosos. Deu assim a modos que uma colher de sopa a cada um de nós. Mais a fatia do pão. Um canequito de água. E mais nada. Eu a esconder a lágrima.
Chegamos a Odemira – tudo fechado.
Lá em cima o meu filho dormia regalado.
E eu fui para a cama sem saber se estava triste ou se a missão cumprida naquele dia me dava direito a pelo menos dormir descansada.
Ilustração: Congregação Oblatas Divino Coração (Santa Maria) de Odemira, de Beatriz Lamas Oliveira
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