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Quarta-feira, Julho 17, 2024

A Quinta

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

A sala de visitas.

A sala de visitas deitava a norte. Duas lindas janelas, com múltiplos vidros quadrados incrustados nas molduras de madeira. E contem-nas! Cinco portas!

Vejamos. Uma porta para o quarto dos pais. Uma porta para a escadaria nobre. Mais uma para o escritório do dono da casa em exercício. Outra, para o longo corredor que dando acesso aos quartos, à sala de jantar , à cozinha e às casas de banho, corredor que não serpenteava mas seguia direito  que nem um fuso. A última porta da sala de visitas, pasme-se, dava para um segundo quarto de casal que a seu tempo será mais um postal ilustrado nunca enviado para o correio.

Com tantas portas ainda sobrava espaço para o piano, a mesa das solenidades (assim lhe chamava eu porque nela havia um salva de prata para quem chegasse deixar ficar o cartão de visita com que se anunciava), os dois belos sofás de palhinha e pau rosa cujas almofadas aconchegavam as costas dos leitores como a menina Tizinha. Bibelots e cache pots de porcelana, panos bordados pelas mãos de antepassadas com nomes estranhos que já não eram utilizados.

Nada era sombrio, antes bem iluminado sobretudo quando, no mês de agosto, a porta que dava para a escadaria era aberta e duas cadeiras lona e um guarda sol de praia que não destoavam na sua paroquialidade dos móveis solenes do resto da casa.

Os degraus desciam amparados de ambos os lados por pesados potes de faiança antiga onde as flores surgiam, miraculadas. À esquerda havia, e ainda lá está, uma árvore de araçás. A escada poisava num patamar intermédio onde se dividia para ambos os lados e os degraus continuavam o seu rumo ao jardim que se estendia como toalha de mesa quadrada.

Debaixo da escada havia uma porta misteriosa que quando entreaberta mostrava ferros e madeiras desconjuntadas, ligadas por muitas teias de aranha que carinhosamente abraçavam aquelas mobílias que já tinham vivido lá em cima, no primeiro andar, mas que agora, roídas pelos anos e pelo caruncho, para ali estavam deitadas. Pareciam os doentes de refugo de algum grande hospital de alienados.

Ao domingo abria-se o portão grande do jardim por onde podiam entrar os automóveis que viessem buscar os mais idosos ou alguém mais atarantado pela saída solene para a missa no Bom Jesus ou no Sameiro.

A menina Tizinha lá descia as escadas cujos degraus altíssimos foram diminuindo a sua gravidade à medida que a menina cresceu e as pernas já eram capazes de passar aquele temível obstáculo sem mais cuidados. Na verdade a menina lembrava-se com gratidão de uma mão quente que a tinha ensinado a subir e a descer as escadarias dos convidados.

Sala de visitas, convidados? Quem eram essas pessoas grandes que chegavam com grandes exclamações de apreço almiscarado? Vinham porque por vezes havia festas. Casamentos, batizados, primeiras comungantes. A Tizinha foi uma delas. Organza branca, um toucado de pétalas de seda. A franja dos cabelos lisos e rebeldes a espreitar.

Mas um dia a sala de visitas alterou-se e o roçagar das sedas mudou-se para lágrimas discretas que pingavam.

_ A menina Tizinha não vá à sala de visitas_ informou a Ama Helena. Nem a sua mãe , nem a sua avó a querem ver por lá.

Claro que esta admoestação serviu para espicaçar a curiosidade da menina que pressentia haver mais verdades nas palavras não ditas do que nas frases declamadas.

Era tão fácil dar a volta à casa. Passar de uns compartimentos aos outros, empurrando portas e reposteiros, sem se fazer notar. Comparada com a Tizinha só uma futura paparazzi.

Conseguiu chegar ao local onde tinha sido prevenida de que não podia estar. A sala de visitas estava do outro lado do reposteiro de veludo pesado.

_ Então Domingas, e que vais fazer à tua rapariga que assim te envergonha?

_ Oh minha senhora, que hei-de eu fazer senão chorar?

_ Chorar, chorar, não resolve nada.  Vais ter o crianço em casa?

_ Agora já vai nos quatro meses, Que vamos nós fazer?

_ E a voz dura respondeu:

_ Façam as malas. Aqui não queremos desavergonhadas.

Era a sala das visitas que nesse dia albergava os sem casta.

 

Ilustração de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


 


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