Uma poética que revela cenas, objetos e situações do cotidiano, captados por um olhar fotográfico que transforma o banal no nunca visto: assim poderíamos definir a escrita de Kátia Marchese.
Em sua lírica concisa, substantiva, recortada, ela nos apresenta à geografia e aos itinerários da Baixada Santista, a recordações da infância, aos tristes acontecimentos da realidade brasileira, com um duplo compromisso: o primeiro, com a rigorosa construção da linguagem, o segundo, com a sinceridade das palavras, que por vezes assumem uma dimensão visceral, como um grito guardado numa concha.
Poesia delicada, sutil, mas também incisiva e ferina, de uma autora que sabe fazer aquilo que quer com as palavras.
Golpe
A mulher cortou
a primavera.
Observo a aridez
do sol a pino.
Ela tem um doberman
acredita em transgênicos
Beira
A menina ruiva
com coração de coelho
tinha bolsos cheios de pedras
e um rio profundo a sua frente.
Não podia dançar
com demônios em suas costas.
-Por favor, diga meu nome e não haverá nenhum afogamento.
A morte da afilhada de Nossa Senhora Aparecida
Na lápide de cimento fresco,
com palito de fósforo, escrevi teu nome:
Odete Rodrigues Salgado
Na tua casa, no tanque,
a roupa aguardava desde ontem.
Silenciosa, lavei e torci as dores.
Tia, não lembro datas.
Teu nome, letreiro na memória,
ficou maior que o tempo.
Vestidos não choram no armário
A casa inflada de sons,
mulheres e palavras
motrizes dos desmoronamentos.
Cúmulos
Nunca mais
olhou para o Céu-
cemitérioGirou o eixo,
a Terra paira sobre sua cabeça,
o verde pende
e agarra as mãos.
Deixa o abismo aos pés.
Canal 7
Da janela avisto a barra
esquina Constantinopla.
Navios em trânsito
apitam seus mundos
dentro dos meus.
O incontornável
(o contrário)
Encosto o vazio à palma da mão
porque sofro por teu azul.
por Claudio Daniel, Poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG | Texto original em português do Brasil
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