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Sábado, Dezembro 21, 2024

BCE estimula economia europeia

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Na sua reunião mensal de 12 de Setembro o Banco Central Europeu (BCE) decidiu baixar as taxas de juro de referência – que se situam agora para depósitos institucionais em -0.5% – e reiniciar o seu programa de compra de títulos de dívida ao ritmo de 20.000 milhões de euros mensais.

  1. O último pacote de criação monetária

É a última grande decisão do BCE sob a presidência de Mario Draghi e tem como significado essencial que aquilo que tinha sido visto como conjunto de medidas não convencionais usadas como último recurso para enfrentar uma situação anormal se tornou agora mais a norma do que a excepção, tendo como argumento persistente o da fraca progressão do índice dos preços ao consumidor.

Na conferência de imprensa Mario Draghi não respondeu a uma questão essencial: por que razão o seu programa de compra de títulos é agora ilimitado, contrariamente aos anteriores; insistiu na necessidade de os países com margem orçamental aumentarem a sua despesa e fugiu diplomaticamente a enfrentar qualquer das questões politicamente mais delicadas, não deixando no entanto de reivindicar para as decisões tomadas pelo BCE a redinamização da economia europeia depois de 2012 consubstanciada na criação de onze milhões de empregos.

Começando por este último ponto, esta é mais a forma de falar de um candidato político do que a de um burocrata. Há cinco anos atrás, Mario Draghi tinha a ambição de ser o próximo presidente da Comissão Europeia. Sendo certo que ele era provavelmente o único político com rasgo e arcabouço para o cargo, gostaria de saber o que o fez mudar de opinião. Será que o discurso político é uma herança desses tempos, ou ele tem alguma ambição específica?

O que me parece mais interessante neste debate é a profunda transformação do que significa a moeda, apesar de Mario Draghi a enterrar em clichés e eufemismos, o que provavelmente nunca poderia deixar de fazer.

A noção de que a política monetária (criação de moeda pelos bancos centrais) só tem de se preocupar com o índice de preços no consumidor (vulgo inflação) está consagrada nos tratados europeus, é uma herança do consenso de Washington (neoliberalismo) e poderá entender-se pela situação então vivida de inflação elevada, mas não faz qualquer sentido nos nossos dias.

  1. A moeda como instrumento de crescimento

A visão da moeda como um instrumento a ser usado quer para fazer a guerra, quer para dominar um espaço ou, com a intenção de conseguir assegurar crescimento económico em geral ou pleno emprego em particular é relativamente antiga, ou se quisermos, mesmo mais antiga do que a ideia de moeda como um fim em si.

Aristóteles, tal como Xenofonte, coloca a questão como central no debate ético, político e económico (no sentido que era dado ao conceito de economia, da gestão do agregado familiar), classificando a lógica de usar dinheiro apenas com o fim de ter mais dinheiro como insana, numa preocupação que aparece também de várias formas nas religiões que nos estão mais próximas.

Insana ou não, a verdade é que a idolatria do dinheiro – apesar de acerbamente criticada, do bezerro de ouro, à parábola do rei Midas – faz o mundo girar, não porque o dinheiro tenha algum poder mágico mas porque, em determinadas condições se torna uma obsessão imparável e de massas passível de se canalizar para um fim específico.

Os economistas quiseram dar parâmetros quantificados e objectivos à capacidade da criação da moeda para se transformar materialmente em emprego, sendo que a criação de dinheiro é suposto ser positiva enquanto há recursos não utilizados e má – traduz-se em aumento de preços, que quando elevado e instável pode ser contra produtivo lançando a desconfiança generalizada no valor do dinheiro – em caso contrário.

A realidade é certamente mais complexa, multiplicando-se a chamada ‘ciência económica’ em cada vez mais intrincados argumentos para explicar por que razão isto acontece nalguns casos e não noutros, mas na verdade as suas explicações só funcionam a posteriori continuando a revelar-se inúteis como instrumentos de previsão.

O que me parece claro dos instrumentos postos a funcionar pelo Banco Central Europeu, como aliás pelas suas instituições congéneres, é que a criação de moeda se transformou essencialmente na subida de preços dos principais títulos financeiros, dado que o BCE aumentou a sua procura, uma subida que aparece como positiva, contrariamente à subida de preços do consumidor.

Esta subida dos preços não prejudica de forma alguma a sua procura, porque ao mesmo tempo, as taxas de juro desceram, sendo como vimos negativas, o que eleva a rentabilidade relativa dos títulos.

Dando um exemplo, para um grande investidor que considera hipótese de Portugal declarar a insolvência nos próximos seis meses ser muito pequena, faz mais sentido emprestar dinheiro a -0.1% ao Tesouro a seis meses do que pagar -0.5% no Banco Central (os custos e riscos de converter este dinheiro digital em notas a meter debaixo de hipotéticos colchões seria seguramente maior ainda).

O efeito destes mecanismos na chamada ‘economia real’ é menos pronunciado mas existe. A baixa da taxa de juro incentiva o investimento ou a despesa; o aumento do valor dos activos financeiros das empresas dá-lhes maior capacidade de investimento.

  1. O efeito Draghi na União dos devedores e credores

O efeito mais pronunciado da política monetária de Draghi é na inversão da relação entre devedores e credores.

A moeda única tornou Portugal num país brutalmente endividado. Nos cálculos feitos pelo programa do Bloco de Esquerda a posição de endividamento de Portugal passou de 13.2% para 118.6% de 1996 a 2014.

Isto aconteceu essencialmente porque a banca portuguesa reciclou excedentes europeus e os investiu mal, ou pura e simplesmente desencaminhou, encontrando maneira de passar a factura para o erário público.

Este nível de endividamento – um dos maiores do mundo – teria já levado à insolvência, ou na linguagem eufemística do Bloco de Esquerda à ‘renegociação da dívida’ – não se fosse ter dado o caso da completa inversão do nível dos juros que aconteceu também porque, justamente, Mário Centeno teve o bom senso de afastar do debate essa peregrina proposta de ‘renegociação da dívida’ que apesar de toda a evidência continua a ser defendida pelo Bloco de Esquerda no seu programa.

Ter uma dívida colossal, e nada pagar por ela, ou no limite, receber mesmo alguma coisa por ela, não é obviamente problema. Problema maior é quem assentou na renda da dívida as suas expectativas económicas.

Ninguém sabe dizer por quanto tempo esta situação se vai manter, mas a decisão do Banco Central Europeu desta semana dá seguramente melhores perspectivas do que as que tínhamos anteriormente.

Com o Mário europeu a terminar o mandato e o Mário português a parecer inquieto para mudar de poiso – a última coisa que li é que ele estava disponível até 2020… – a decisão do BCE de 9 de Setembro foi a melhor notícia que Portugal poderia ter tido.

Interessaria agora aproveitar o tempo que temos pela frente para tentar emendar os erros cometidos e que nos levaram à dramática crise de há uma década.


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