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Sábado, Dezembro 21, 2024

Ser médica seguindo o caminho de Damasco

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

A faculdade de Medicina no Hospital de Santa Maria abriu-me o mundo das doenças e das pessoas que delas se tornavam sujeitas. Tudo o que aprendia parecia interessante. As aulas ao lado da cabeceira da cama só começavam no quarto ano. Eram horas que passávamos ao lado do paciente a colher a história clínica.

Não posso ter sido a única a ficar maravilhada, surpreendida, mas também assustada com tanta história de vida, pois a doença que tinha trazido aquela pessoa à cama de um dos  melhores hospitais do País tinha uma raiz profunda no seu passado, nos pais que tinha tido, no casamento que tinha vivido, ou na viuvez, ou num estado nupcial mal definido que depois descobria que o era por ser dificilmente confessável. Era preciso escrever ou descrever tudo o que o ou a doente contava e pormenorizar a região de onde vinha, o trabalho ou ausência de vida profissional ativa. Tornou-se necessário aprender a descobrir os regionalismos, as expressões que davam voz à forma de sentir e de contar ou de esconder. A Santa Maria chegavam doentes de regiões distantes, e que chegavam por terem diagnósticos complexos e difíceis de decifrar.

Expressões como “a boca do corpo” eram surpresas que correspondiam sempre a uma lógica milenar que abria o significado longínquo de uma sabedoria popular que eu nem imaginava existir.

Penso que ter lido durante os anos do Liceu autores realistas como Erskine Caldwell, John Steinbeck, Dostoievsky, Aquilino Ribeiro, Eça de Queiroz, Alves Redol, José Régio, devem ter-me servido de guias para entender situações e vidas das quais pessoalmente tinha muito pouco conhecimento. Também as histórias ouvidas na Quinta, as histórias da Ama Helena e relatos murmurados  ouvidos entre portas e reposteiros, foram ganhando contornos de realidade e começaram a ganhar uma luz nova de vida. Desde muito pequena tentei entender porque é que as pessoas grandes mentiam ou omitiam acontecimentos que pelos cuidados com que nos eram interditos só podiam ser sujos, atemorizantes e sórdidos.

Os doentes confiavam em nós, talvez porque nos sabiam sob a asa do Senhor Professor, e lá entenderiam que se nos davam a tarefa de escrever a sua história era porque seríamos dignos disso.

A clínica, a fisiologia, a fisiopatologia eram fascinantes, mas ao reler a história escrita e ao apresentá-la ao diretor clínico ou a um dos assistentes mais graduados, o mais maravilhoso era fazer emergir um todo, o todo daquela pessoa que sofria e que vinha pedir auxílio.

Os doentes contavam, por vezes alteravam o relato quando se sentiam entendidos e aceites nas suas diferenças. Ainda agora me faz sentir perplexa como era possível eu ter 20 anos e ouvir as confidências de doentes do sexo masculino muito mais velhos do que eu, doentes com peculiaridades difíceis de admitir, doentes que era a primeira vez na vida que falavam sem omitir o muito que tinham escondido da família, da mulher ou do marido e muito mais dos vizinhos.

As histórias clínicas tinham de ser muito bem escritas. Não eram admitidos erros ortográficos nem de gramática. Um Professor Catedrático de quem gostávamos muito era temido por “chumbar” alunos que escrevessem mal.

Sem me dar bem conta disso fui mudando toda a minha forma de olhar para os outros e esse olhar diferente alcançou as pessoas mesmo aquelas que não eram os “nossos” doentes.

Lá fora da Universidade os outros começaram a ganhar outra textura e ler-lhes nos olhos, nos gestos, nas expressões, nos tiques, tornou-se intuitivo e rico, pois as pessoas deixaram de ser tão baças, e deixaram de ser apenas ou “bonita” ou “feia” ou “alta” ou “gorda”. Outras qualidades emergiam – ser frio ou caloroso, ter um contacto distante ou excessivamente próximo, ser melifluo ou reptilineo. Ser viscoso e causar calafrios.

Afinal estas qualidades que emergiam eu já as tinha encontrado nesses romances dos autores clássicos, em Somerset Maugham e em Georges Simenon. Mas agora era tudo mais inteligível, mais claro, havia um fio condutor que ligava a pessoa e a doença, era rápido ligar aquela personalidade com a patologia de que sofria, havia uma conexão entre aqueles pais, aquela família, aqueles casamentos e o início do quadro das dores, das apreensões, das disfunções.

Noutros casos não. A relação entre a história de vida, a personalidade e a patologia não era evidente.

Mas houve casos em que a suspeita de que um sofrimento emocional profundamente enterrado na memória e defensivamente escondido, apareciam nas doenças gástricas, na dermatologia ou mesmo nas leucemias.

Foi por ler muito, tentar entender muito, por querer descortinar a relação entre aspetos do comportamento humano  que inicialmente pareciam não estar na mesma órbita das queixas dos pacientes, que me tornei médica e foi a escrever histórias de vida dos “nossos” doentes que me tornei escritora.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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