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Sábado, Dezembro 21, 2024

Os Hospitais Civis de Lisboa

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Para nós, alunos da Faculdade de Medicina no Hospital de Santa Maria, trabalhar nos Hospitais Civis de Lisboa representava qualquer coisa como um prémio de estudos.

No quarto ano fomos autorizados, um grupo de estudantes que se disponibilizou para isso, a frequentar e trabalhar 24 horas seguidas no Banco de S. José.

Fomos bem recebidos. O Balcão de Homens, o Balcão de Mulheres, os dois blocos operatórios a funcionarem em contínuo, os cuidados intensivos eram campos de batalha onde se lutava uns pela vida, outros como nós para diminuir o sofrimento e receber ensino dos mais velhos.

O Chefe do Banco de S. José era um médico graduado rodeado de prestígio. Tinha uma sala gabinete só para ele, mesmo ao lado da sala de refeições.

Cozinheiras simpáticas, afáveis e cordiais atarefavam-se para dar um apetitoso frango frito a toda a hora e momento em que uma folga no serviço nos permitisse ir matar a fome.

Todo o pessoal nos tratava por “senhor doutor” desde os chefes de serviço até aos auxiliares que nos conheciam o nome.

O Banco de São José tinha nomes famosos, cirurgiões que tinham treino de cirurgia de emergência em teatro de guerra, internistas conhecidos, mas todos tínhamos a mesma bata branca e comprida até aos pés e ninguém poderia saber se estávamos bem ou mal vestidos.

A São José vinham ter todas as vítimas de acidente, os suicidas que não tinham conseguido o seu objetivo, as pessoas que tinham acidentes cardíacos ou cerebrais encontradas caídas na rua. Mas vinham também as prostitutas que trabalhavam ali perto no Martim Moniz, em Alfama, na Graça, na Mouraria. Vinham também os chulos que as mantinham presas na estranha trela em que parecia que elas mesmas tinham metido o pescoço.

Vinham os cabo-verdianos esfaqueados, macérrimos, com um olhar longínquo que parecia sempre procurar as suas ilhas natais.

No Balcão era o primeiro atendimento e a triagem. Alguns corpos seguiam diretos para a morgue, pela última vez na vida tinham tido o azar ou a sorte de saírem de cena, como enigmas.

Vítimas de acidentes, poli traumatizados, seguiam, já com o soro a correr, ou para o Bloco Operatório ou para os cuidados intensivos.

Muitos acidentes vasculares cerebrais, idosos/as que pareciam confusos e não sabiam onde tinham vindo cair. Alguns conseguiam falar, pediam para lhes avisarmos as famílias.

No Banco de S. José havia um corpo de senhoras voluntárias que ajudavam nestas tarefas acessórias mas imprescindíveis. Usavam bata amarela e eram chamadas de Icterícias. Constava que eram todas mulheres filhas de algo, usavam cabelos demasiado lacados para aquele lugar onde reinava a aflição, a dor, a morte, o risco, a desgraça e o milagre de salvar vidas.

Trabalhávamos de forma de tal modo desenfreada que não sentíamos fome nem cansaço, não sentíamos pena, mas sentíamos alegria quando o trabalho intenso era recompensado com uma alta em situação de “estabilizado”, ou seja doentes que podiam seguir para um dos outros Hospitais Civis onde havia uma vaga.

Integrada numa equipa de Ortopedia de urgência, numa sala  que parecia um cenário de guerra, aprendi muitíssimo. O cirurgião era um gigante forte e carinhoso, com olhos azuis maliciosos, que sozinho era capaz de levantar ao alto a perna mais pesada que nos aparecia com fratura exposta ou fratura múltipla. Com ele aprendi a vestir-me para ir para o Bloco. A lavar as mãos e os antebraços com escova, a enfiar a bata esterilizada que a enfermeira atrás de nós apertava com atilhos. Colocar a máscara e o barrete, transformava-nos a todos, na equipa, em iguais, embora o chefe nos dirigisse com movimentos discretos de cabeça e palavras que seriam ríspidas como “bisturi”, “clamp” “tesoura” ou mais um “campo”.

Por vezes, de madrugada, o chefe da ortopedia convidava-nos a descer ao Gambrinus, onde nos pagava uns copos e uns mariscos, pequeno almoço e lugar para onde os nossos bolsos de estudante nunca teriam entrada, mas onde éramos conhecidos pela “nossa senhora e os pastorinhos”.

Intensamente treinados e desentranhados da meninice.

Ainda não havia Serviço Nacional de Saúde, a ideia essa germinava, muitos opostos se cruzavam e fazia de nós, distintos. Eu tinha mesmo vinte anos.

Ilustração: Alfama, de Beatriz Lamas Oliveira


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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