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João de Sousa

Terça-feira, Julho 16, 2024

As uvas do pessoal

José Cipriano Catarino
José Cipriano Catarino
Professor (aposentado) de Português. Licenciado em Estudos Portugueses e Franceses pela Faculdade de Letras de Lisboa. Mestre em Linguística pela mesma faculdade.

Veio o 25 de Abril, depois o 11 de Março, chegou quente o Verão do Companheiro Vasco. Cravos e punhos erguidos, barbaças aterradoras. Muita gritaria para que a Verdade penetrasse nos ouvidos empedernidos dos matarruanos:  o povo unido jamais será vencido!

Na vanguarda, o sr. João: chegara a hora da mudança. E avançava projecto emancipador: uma cooperativa agrícola, onde os camponeses recebessem atempadamente a justa paga do seu labor, sem distinção entre pobres e ricos.

Defendia a ideia no café, no largo, respeitosamente escutado — afinal era o senhor João, proprietário de muitas terras, empregador de servos —, mas, mal virava costas,

— O que ele quer sei eu!

Sabiam. Sabiam desse saber de experiência feito que toda a gente é feita da mesma massa, a querer tudo para si, nada para os outros. Que Deus fez torto o Mundo e não há Messias que o endireite. Que o homem é o ladrão do homem. Bastava ver a ribaldaria em que, derribado o regime de Marcelo Caetano,  o país mergulhara. Alferes imberbes eram promovidos à capitães, a majores, e eram esses badamecos que agora nos governavam. Não que negassem razão ao sr. João. Bem sabiam que na agricultura o lucro é sempre, e só, dos intermediários. E o que penavam para receber o dinheiro do vinho vendido, esmolando adiantamentos junto dos compradores, figurões da terra, os quais pagavam quando e como queriam?

Mas no minifúndio os camponeses têm dupla personalidade, simultaneamente proprietários e assalariados; cuspiam nas mãos, como se nelas segurassem o cabo da enxada, empurravam a boina para o alto da cabeça, acenavam afirmativamente, sim senhor, uma cooperativa é coisa boa, isso é que nos resolvia as coisas, mas mal o sr. João virava costas costas lá vinha

— O que ele quer sei eu!

Desconfiavam dele. Era ateu. Desconfiavam da sua conversa: Jesus, dizia, foi o primeiro comunista. Desconfiavam da família: um tio, republicano velho, estivera envolvido nos motins contra Salazar e, murmurava-se, em morte de homem. Um irmão, desertor, esteve fugido em França. Era do MDP/CDE. Para os camponeses — comunista, como sempre tinham suspeitado.

A cooperativa avançava, empregava até retornados de Angola na abertura dos alicerces:

— Já arranjaste trabalho?

— Ando na construção da adega dos comunistas!

Nunca passou das fundações. Matou-a a caça aos comunistas, no Verão Quente de 75. Pouco importava se eram militantes ou meros simpatizantes. O ódio ancestral ao jacobinismo, aos pedreiros livres, aos ateus, renascera com as ocupações de terras no Alentejo, e os mais raivosos eram aqueles que de seu pouco iam além dos sete palmos que nos esperam no cemitério.

A cooperativa, que comprara uvas, não as pagava: o vinho, dizia o sr. João, não escoava, perdidos os mercados africanos com a descolonização. Mas tinha esperança na ajuda revolucionária:

— A União Soviética vai comprar o nosso vinho!

Não fazia diferença o serem vermelhos — contanto que o bebessem. E durante algum tempo sonhou-se largo, seriam muitos milhões de bêbedos eslavos a trocar o ruim vodka, que tanto mal faz à saúde, pelo nosso tinto — quem sabe se graças a ele se operaria um dos milagres de Fátima, a conversão da Santa Rússia! Mas os tempos não estavam para milagres, a fraternidade revolucionária era mera propaganda. Os russos não nos compraram o vinho.

E numa noite homens revoltados, desconfiados de mescambilha, pintaram em letras vermelhas no muro da casa do sr. João:

“Pequeno Cunhal

Paga as uvas do pessoal!”

 


Litografia

Cipriano Dourado
Vindimas

Assinada e datada 55


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