De 24 para 26 de Abril de 1974 mudou-se de uma situação em que tudo era proibido para outra em que nada era proibido ou, mais exactamente, em que ainda não se sabia o que ficaria proibido.
Um Maio bem quente
Com escassos 21 anos na altura fui anotando alguns momentos em que começaram a surgir vozes que contrariavam a onda de revoltas, reivindicações e vontade de confraternização que mostraram que a Revolução de Abril ia ter inevitavelmente uma dimensão de revolução social. Por ser a referência mais inócua que posso fazer no contexto do presente artigo, cito a revolta das crianças de uma aldeia SOS, logo declarada sem fundamento. Contudo, para não me apoiar apenas nas minhas recordações dispersas, socorrer-me-ei de Maio ‘ 74 dia-a-dia, anunciado como “tudo o que foi notícia em seis jornais diários de maio de 1974”, sendo esses jornais O Século, A Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular e República, hoje todos desaparecidos, e Diário de Notícias, que subsiste em edição de fim de semana.
Da colecção de notícias retidas emerge claramente a multiplicidade de reuniões e reivindicações nos locais de trabalho, com saudações à Junta de Salvação Nacional (o MFA não é ainda visto como uma realidade distinta), saneamento de funcionários e direcções sindicais, proposta de criação de novos sindicatos, inclusive na função pública (em que eram proibidos pelo Estatuto do Trabalho Nacional), com constituição de comissões visando ou não tal criação, saneamento de administradores, dirigentes e chefes de secção de pessoal ou até de contabilidade, sobretudo em empresas e instituições particulares sem fins lucrativos, e também em entidades públicas, e sobretudo aumentos de salários tendo frequentemente como referência os seis mil escudos mensais defendidos numa celebrizada proposta de CCT para os metalúrgicos. E muitas ameaças de greve, ou mesmo greves, se bem que muitas vezes suspensas mesmo ainda sem uma resposta totalmente satisfatória, mas agora noticiadas no espaço publico, dando aos militares uma impressão de perda de controlo e, por que não dizê-lo, de anarquia.
O Governo em constituição, negociado com os principais partidos e presidido por Palma Carlos, contava com um ministro do Trabalho comunista, dirigente sindical dos bancários do Norte, mas foram-lhe agregados – isto veio nas notícias – para responder à crise os Ministros Álvaro Cunhal e Francisco Pereira de Moura, ficando a cargo do último uma tentativa de explicação de que nem toda a gente poderia ter salário mínimo de seis mil escudos, aliás a inflação que, fruto da guerra, já era elevada nos anos anteriores, cedo conheceu uma rápida subida.
Recorda a edição por mim consultada que neste mesmo mês de Maio se decidiu formar um sindicato nos CTT mas que antes do fim do mês, pronunciando-se a direcção eleita contra a realização de uma greve, foi ultrapassada pelo pessoal das estações centrais que iniciou um movimento com larga adesão. Não se menciona que o PCP tentou mobilizar os seus estudantes para dissuadirem os grevistas, mas há ecos de que a greve foi travada por pessoal das Forças Armadas, não sem que dois oficiais, julgo que milicianos, tenham sido objecto de voz de prisão por desobediência. O episódio era susceptível de favorecer, junto da hierarquia das Forças Armadas, a adopção de soluções autoritárias, sendo que Spínola já tinha reunido na Manutenção Militar um conjunto de administradores de empresas incentivando-os a “organizarem-se” e que dentro em pouco começaria a acalentar a hipótese de, tal como Carmona em 1927, realizar eleições presidenciais antes de eleições parlamentares e que Palma Carlos procurava o reforço dos seus poderes. E poderá ter sido aqui que começou a sentir-se a necessidade de aprovar uma Lei da Greve, que viria a sair já sob o II Governo, já sem Palma Carlos mas ainda com Spínola como Presidente da República, e uma Lei de Requisição Civil, que já sem Spínola como Presidente nem Firmino Miguel como Ministro da Defesa, viria a sair em Novembro.
Ainda em 1 de Junho de 1974, como a recolha de notícias não deixa, de algum modo escalizadamente, de registar, a Intersindical realizava em Lisboa uma manifestação sob a palavra de ordem “Não à greve pela greve!” ecoando uma intervenção de António Dias Lourenço de alguns dias antes, que me recordo ter recebido o apoio do MDP e de nenhuma outra força e que (não estou certo de que tenha sido nesta ocasião) se pronunciou igualmente contra a co-gestão e a autogestão.
Um conflito que deixou sequelas
O PCP não tinha então, como não tem hoje, a chave para a realização de greves ou sua cessação. Por um lado, era frequente que um apelo à greve tivesse ecos, mas com lideranças próprias, em empresas em que não tinha implantação e não é preciso ir a 1973 e a Carlos Brito para o confirmar, basta atentar no Até amanhã camaradas! e nas grandes greves de 30 anos antes para o perceber. Por outro, em muitas zonas do país não tinha organizações e algumas das que tinha haviam ficado desligadas com a prisão de funcionários clandestinos. Acresce que os militantes que foi reencontrando ou que pela primeira vez aderiam não eram necessariamente tidos como uma vanguarda nos seus locais de trabalho.
Ora o movimento grevista que descrevemos tendia a atingir trabalhadores sem experiência de lutas anteriores, compreensivelmente impacientes, que não estavam sensibilizados para a visão mais global do PCP, ou se irritavam com as suas greves serem, já então, vistas como “de direita”, houvesse ou não participação nos processos de antigos quadros do regime derrubado (Ary dos Santos: “Diz que foi preso, mas que está teso no Sindicato… o Facho !”). Também a existência de um enxame de grupúsculos, que tendo lido o “Que fazer ?” e dispondo de um jornal se lançavam à procura de uma base operária, os quais os militares tendiam a confundir com o MRPP, terá contribuído para tornar alguns processos reivindicativos mais complexos.
Assim como nem todas as situações de abandono de empresas pelos patrões, podiam ser vistas na altura como “sabotagem económica” nem todas as greves que “serviam objectivamente a reacção”, tinham essa intenção. A partir de Outubro de 1974, e por força também de outros factores que não há espaço para tratar aqui, agravou-se o relacionamento no terreno entre militantes do PCP e outros intervenientes que nuns casos se vieram a acolher na UGT quando ela foi fundada, noutros casos continuaram a ser portadores da ideia de uma “outra esquerda” ou da memória destes “movimentos alternativos”.
As leis da greve e as análises de Raquel Varela
Raquel Varela chama também a si as dores destes “movimentos alternativos” que combateram a Lei da Greve de Agosto de 1974 denunciando o Ministério do Trabalho de que ela tinha emanado (Costa Martins era Ministro e Carlos Carvalhas Secretário de Estado), apresentando a Lei da Greve de 1977 que revoga a anterior, como muito mais favorável. Assinala que, entre outras malfeitorias, a Lei de 1974, proibia a greve política e de solidariedade, a “cessação isolada de trabalho por pessoal colocado em sectores estratégicos da empresa, com o fim de desorganizar o processo produtivo” e a ocupação dos locais de trabalho durante a greve, e permitia o lock-out. É um facto, embora fosse necessário inquirir se foi efectivamente aplicada. Uma questão que seria importante elucidar era como é que esta lei da aparente iniciativa de “comunistas alinhados com a URSS” acolhia tantos traços do ordenamento jurídico da greve da República Federal Alemã, onde o PS realizou em 1973 o seu congresso constitutivo e que apoiou aquele Partido desde o início. Terá o texto, que daría resposta a pressões da Presidência da República, vindo do próprio Partido Socialista, ou até do Ministério de Justiça de Salgado Zenha? A investigadora refere, na edição da sua tese, que o PCP se queixa de ela ter sido previamente consensualizada com o PS e depois este ter enveredado pela crítica pública à lei, alegando não poder deixar de veicular o descontentamento manifestado pelas suas bases. Pela minha parte, confirmo que “ouvi” em 1974 essa queixa. Carlos Carvalhas ainda é vivo, talvez possa deslindar este mistério, a não ser que a génese deste diploma seja um segredo.
Se a Lei de 1977 é (efectivamente) mais favorável não foi por mera opção legislativa do momento mas porque entretanto a Constituição de 1976 – e importaria estudar os trabalhos da Assembleia Constituinte – veio dispor em sentido contrário-ao da Lei de 1974 ao estatuir que “compete aos trabalhadores definir o âmbito de interesses a defender através da greve, não podendo a lei limitar esse âmbito” e ao proibir o “lock-out”. E mesmo assim, ao contrário do que faz a autora citada, talvez não se possa determinar o alcance do novo dispositivo legal através da identificação do que constava da Lei de 1974 e já não consta desta: o não haver proibição expressa de “cessação isolada de trabalho por pessoal colocado em sectores estratégicos da empresa” não tem coibido a doutrina deconsiderar ilegais as greves articuladas ou rotativas, e, mais recentemente, as greves cirúrgicas, etc.
Esta investigadora (que nasceu em 1978) afirma “sustentei em vários livros que é muito mais fácil hoje aos trabalhadores organizarem-se do que o era há 30 anos” . A sua análise “superestrutural” baseada nas leis da greve, precisa, como tentei mostrar, de ser melhorada. As possibilidades de organização eram, na minha visão, muito mais fortes logo a seguir ao 25 de Abril: por um lado os direitos foram sendo conquistados através do seu exercício, as derrotas da direita militar em 28 de Setembro de 1974 e 11 de Março de 1975 criaram mais confiança às organizações de trabalhadores e, não esqueçamos, o COPCON funcionou largamente, como se dizia na época, como “guarda- chuva protector das movimentações populares”, por outro existia na altura um número elevado de grandes empresas, em número de trabalhadores, e sectores muito combativos, como os metalúrgicos. Desde aí, verificaram-se processos de desindustrialização, situações de encerramento ou redução de pessoal em muitas empresas, uma tendência para a atomização das relações de trabalho. Mas Raquel Varela vem aduzindo outros argumentos e discuti-los-ei em futuros artigos.
Saneamentos típicos de 1974, ou talvez não
Em princípios de 1973 na sequência da vigília na Capela do Rato, Francisco Pereira de Moura e outros funcionários públicos ou simples contratados foram demitidos por deliberação do Conselho de Ministros ao abrigo de legislação de 1935, sem dependência de qualquer forma de processo. O Conselho Escolar do Instituto Superior de Economia, que tinha em preparação a passagem deste prestigiado professor a catedrático mediante convite a formular pelo Ministro, não deixou de protestar vivamente e toda a sua equipa de assistentes se recusou a assegurar a leccionação da cadeira em seu lugar.
Fora desta equipa acabaram por aceitar fazê-lo um Assistente, António dos Santos Labisa, também quadro do Ministério das Finanças, que tinha exercido recentemente o cargo de Subsecretário de Estado do Tesouro, e E.M., quadro do Fundo de Fomento de Exportação. Os alunos da cadeira, que tinham resolvido, como protesto, absterem-se de comparecer às aulas iniciais, começaram a achar divertido o comportamento destes docente que se sentavam sozinhos num anfiteatro sem alunos e mantinham as luzes acesas durante toda a hora prevista para a aula, retirando-se no fim, e a situação eternizou-se.
Nos primeiros dias a seguir ao 25 de Abril os trabalhadores do Metro exigiram e obtiveram de imediato aumentos salariais. Posteriormente, recusar-se-iam a negociar o que tinha sido “livremente acordado”. A administração em que se integrava Santos Labisa, foi demitida, já não posso precisar se pela Junta de Salvação Nacional ou pelo Governo, por “sabotagem económica”. Exemplo típico de fascistas poderosos instalados no aparelho de Estado que, cedendo a reivindicações laborais pretendiam minar a nova situação? Sem comentários. Entretanto no Instituto Superior de Economia tentava-se sanear o ex-Director Gonçalves de Proença, antigo Ministro das Corporações e Previdência Social que estava desaparecido e contudo obteve muitos anos depois ganho em sede judicial, mas conseguia-se afastar do corpo docente sem apelo sem agravo o já referido Santos Labisa e o seu colega E.M. porque eram respectivamente assistente com contrato trienal e equiparado a assistente com contrato anual. Como hoje se diria, eram precários e portanto, descartáveis.
Os anos de viragem, em que as regras já não são o que eram, são sempre complicados.
Abril em Maio / Editorial Teorema, em edição de 2001. Em “Modos de Usar”os editores explicitam o modo de selecção e de arrumação das notícias e fornecem “indicações de leitura”.
Na Polónia dos anos 1980 foi a perspectiva de se sindicalizarem os bombeiros, até aí sujeitos a enquadramento militar, que terá empurrado o General Jaruzelwski para a declaração do estado de sítio.
Conferir no Jornal Tornado de 28-8-2019, Costa e a Sua greve
Conferir no Jornal Tornado de 11-9-2019 As greves “de Direita”
Estão em causa, respectivamente o Decreto-Lei nº 392/74, de 27 de Agosto, e a Lei 65/77, de 26 de Agosto.
Para conferir a posição de Raquel Varela, ler “Greves na Revolução dos Cravos” (1974-1975), in Greves e Conflitos Sociais em Portugal no Século XX, publicado em 2012 pelas Edições Colibri, que reflecte a sua investigação de doutoramento, concluída no ISCTE – IUL em 2010, com a defesa da tese História da política do Partido Comunista Português durante a Revolução dos Cravos (1974-1975), publicada como História do PCP na Revolução dos Cravos, Bertrand, 2011.
Público de 18-11-2018: “Os estivadores do Porto de Setúbal, os médicos, os professores… Portugal é um faroeste laboral”
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