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João de Sousa

Sexta-feira, Novembro 22, 2024

Festival da Juventude de Berlim – Memória e esquecimento

“Não conheço quem fui no que hoje sou”
Fernando Pessoa

Para ser sincero, a verdade é que de pouco me recordo da minha participação no Festival da Juventude de 1973, em Berlim-Leste, cumprem-se agora 46 anos.

Por um qualquer mecanismo psicológico de seleção que me escapa, o que vivi nesses dez dias foi-se progressivamente filtrando e decantando, a ponto de quase se esbater por completo.

Espontaneamente, lembro-me dos encontros na Alexander Platz, sob o relógio universal, ainda tão analógico… daquela praça com a torre de TV no meio, com que a RDA tentava criar uma imagem de modernidade e desenvolvimento para contrapor ao desafio da rica Berlim ocidental, ali mesmo em frente, do outro lado do muro… lembro-me, enfim, dos passeios na Unten der Linden, a famosa avenida das tílias…

Recordo, também, alguns companheiros de viagem com quem cheguei a privar mais de perto e com os quais tinha maior afinidade – o Zé Oliveira, com quem cheguei a dormir junto, por absoluta necessidade, numas águas furtadas em Paris; o saudoso Murad-Ali, de quem fui colega e camarada na Faculdade de Direito de Lisboa e viria a ser secretário de Samora Machel, com ele tendo morrido no mesmo acidente de avião, em 1986; o Manuel Aranda da Silva, o Henrique Sousa, sempre bem disposto…

Ainda espontaneamente, registei para sempre o desagrado com algumas condutas que me pareciam mais autoritárias, inclusive por parte de membros da delegação portuguesa, uma distribuição de cravos e bandeirinhas metidas à pressa nas nossas mãos pelos camaradas alemães, uns pequenos empurrões, a toque de caixa, para dentro de um estádio… momento em que subitamente compreendi que toda aquela aparente espontaneidade não deixava de ser devidamente enquadrada… e ainda, claro, nunca esqueci uns beijos e abraços trocados com uma jovem Érika, junto às ruínas de uma catedral, na última noite, antes da partida.

Tudo o resto – a ida da Bélgica (onde tinha conduzido eléctricos durante um ano e agora estudava na faculdade de direito da ULB – Université Libre de Bruxelles) para Paris e, depois, a viagem daí até Berlim desvaneceu-se para sempre. Também não lembro onde ficámos instalados e como decorria o dia a dia nessas instalações, à exceção, vagamente, da organização, a cargo dos camisas azuis da Juventude Alemã, sempre presentes.



Entretanto, leio e releio os testemunhos dos meus antigos companheiros de viagem, vejo e revejo as imagens nos resumos filmados do Youtube, e aos poucos vão emergindo na memória outros momentos que pareciam completamente apagados: a saudação com música e flores da juventude alemã, à chegada de comboio a Berlim Leste, os contactos com as delegações dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, a alegria pela retirada americana do Vietname, um ou outro concerto, com destaque para os do Chile – já com o golpe de Pinochet em andamento, mas ainda sem antevermos toda a amplitude da tragédia que viria a desenrolar-se depois em Santiago…

Além dos muitos anos que já se passaram, ocorre-me agora que talvez haja uma razão concreta que explique o esquecimento de boa parte do que vivi então no Festival – o facto de já ter estado antes em Berlim Leste e ter aí vivenciado um episódio que me deixara algumas marcas.

Era um sábado à tarde, e o jovem alemão com quem falava, de repente olhou para o relógio e disse que tinha que ir já para casa. Convidou-me a ir com ele; acompanhei-o até um bairro afastado, com prédios pobres; subimos até ao andar muito modesto em que morava com a mãe e o irmão.

Descobri então o motivo da pressa – ele queria ver na televisão, instalada no quarto comum, a preto e branco, um episódio de uma série americana de cowboys transmitida todos os sábados pela antena de Berlim Ocidental…



Toda aquela alegria do Festival, que decorria em boa parte do simples facto de sermos jovens, toda aquela sinceridade juvenil de apoio a causas mais que legítimas – o fim da guerra no Vietname, a luta contra as guerras coloniais e pelo fim do regime de apartheid na África do Sul, o combate contra a ditadura em Portugal, tudo isso não apagava os problemas e contradições dos regimes de leste, a começar, no caso, pela própria RDA.

Talvez por isso, por já ter estado antes em Berlim Leste, o meu entusiasmo não tivesse sido tão sem mácula como o de outros companheiros. E talvez isso explique o apagamento da memória. Afinal, como viria a descobrir mais tarde, os festivais eram instrumentos da Guerra Fria no confronto da União Soviética com os países ocidentais.

Não que renegue, hoje, esse sincero empenho juvenil em favor dos oprimidos. Mas ele é matizado pelo conhecimento do outro lado da moeda, de que – já antes do Festival – tivera, naquele episódio, uma primeira percepção.

Tendo vivido a ocidente e a leste sob ditaduras, acabaria aliás por concluir que o problema, em boa parte, está no próprio poder sem contestação, independentemente da qualificação ideológica dos regimes: quando a ditadura é de direita, a dignidade está à esquerda; quando a ditadura é de esquerda, os valores estão à direita.

No regresso de Berlim, há entretanto um episódio de que me lembro perfeitamente. Durante a visita à tradicional Fête de L’Humanité, o jornal do PC francês, visitei, claro, o pavilhão da URSS. Já abalada por alguns episódios como aquele que descrevi, a minha fé ainda estava de pé.

Saí de lá com dois sacos cheios de livros de propaganda das agências Novosti e Progresso sobre as maravilhas do comunismo. E foi carregado com eles que entrei no pavilhão quase vazio da Polónia. Pouca coisa – uns cartazes esparsos e uns exemplares da revista La Pologne com a imagem de uma borboleta lindíssima na capa. Para o jovem ainda radical que eu era então, aquilo parecia-me uma deliberada postura apolítica. Com tanto problema no mundo, como podia a Polónia ignorar tudo isso e colocar na capa da sua revista oficial uma simples borboleta?

Foi com esta questão insolente que me dirigi em francês ao senhor polaco engravatado responsável pelo pavilhão: Como é possível?! Olhando para mim, espantado, o senhor respondeu calmamente – “Mais, monsieur, nous ne voulons pas changer le monde…” A minha resposta, indignada, foi esta: “Não querem? Pois deviam querer!!”

Pensando bem, esse foi um bom epílogo para aqueles dez dias de Festival em Berlim, já lá vai quase meio século. Afinal, que seria de nós, se a cada geração a juventude não quisesse mudar o mundo?


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