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Domingo, Novembro 24, 2024

Carta à minha memória

Filipa Vera Jardim
Filipa Vera Jardim
Mantém o blogue literário “Chez George Sand” onde escreve regularmente.

III . Sem recordações

Minha memória,

Passei um tempo sem notícias. Foi muito bom. Um esquecimento em que quase me retemperei: de ti e de mim.

Sempre foi complicada esta nossa dança de tempos. O Passado feito presente, empacotado em episódios que me envias, desordenados.

Lapsos de tempo em que me tentas  fazer esvoaçar lembranças até à frente aberta dos meus acontecimentos, do meu agora e do meu futuro. O agora é meu. É muito meu. É todo meu. Apesar de que não, para sempre. Porque o agora tem essa capacidade de se transformar muito depressa em ontem. E tu, tu alimentas-te do meu ontem. De todo o meu ontem. E és voraz e exigente.

Não minha cara, não te deixarei nunca dançar o tango do meu futuro. Ficarás para sempre lá, no lugar longínquo das lembranças.

Ontem surpreendeste-me. A tua ousadia foi ao ponto de me enviares quase todas as vírgulas da minha infância. Recebi, tive que as receber. Ainda pensei que estivessem adormecidas, mas não. Tinha-las espicaçado, com os poucos pontos de interrogação e mais ainda, de exclamação, que encontraste. Como se na infância houvesse alguma certeza. Ou sequer, as perguntas e os acontecimentos fossem definitivos.

Chegariam, quem sabe, pelo menos atordoadas, embaladas em muito tempo, as virgulas da minha infância, não fosse a tua maldade. Mas não, Trouxeste pequenos episódios que não tiveram nenhuma importância, assim de rompante. Pequenos episódio que não condicionaram em nada o rumo, os rumos de tudo o que se seguiria. Trataste os como se fossem o cerne de alguma questão.

Chegaram por isso, envoltos de realidade. Pequenas vírgulas de que toda a gente se poderia esquecer, não fossem tu…

Abri o envelope das recordações que me mandaste e soltou-se de imediato, o choro, do dia em que me perdi naquela praia. Um choro aflito e urgente dos meus cinco anos envolveu-me a cintura, agarrou-se-me aos cabelos. As lágrimas desse dia voltaram, e ensoparam todo o dia. Lembrei-me como se fosse agora. Um choro agreste, violento. Ainda pensei resgatar do fundo de ti o riso e a vontade que cavalgaram também toda a minha primavera de vida mas não os encontrei. Não faziam parte de nenhuma vírgula da minha infância. Ou faziam e tu assim não o entendeste.

Trouxeste-me depois, a tosse, a febre, as noites passadas a ver sombras que escorregavam pelas portas do armário enorme ao fundo do quarto. Tentaste ainda trazer o medo, eu sei, mas desse consegui-me eu esquecer.

Não quero notícias tuas. Nada de ocasiões mal embrulhadas que insiste em me enviar. Talvez mude de direcção ou talvez opte por nunca mais… Te ter.

 


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