Foram sendo criadas carreiras técnicas superiores com o mesmo conteúdo funcional e perfil remuneratório com base em áreas de habilitação específicas (mas só muito raramente como carreiras especiais mais valorizadas como sucedeu no caso da informática).
A Função Pública portuguesa terá deixado de existir no I Governo de José Sócrates, sob a supervisão do “Ministério das Finanças e Administração Pública” de Teixeira dos Santos, ficando apenas na Presidência do Conselho de Ministros, tal como nos governos PSD-CDS anteriores, uma estrutura ligeira de desburocratização capaz de angariar popularidade mas continuando a caber às Finanças, é certo que com apoio em Secretários de Estado da Administração Pública – João Figueiredo e Gonçalo Castilho dos Santos – uma gestão musculada que não só iria poupar nos salários mas também destruir o próprio regime tradicional de função pública, aproximando-o do modelo empresarial.
Agora, António Costa que pensei inicialmente em 2005 ficaria com a coordenação politica destas modificações a partir da Administração Interna e deixaria o Governo pelo Município de Lisboa em 2007, parece sentir a falta da função pública tradicional, sobretudo dos técnicos superiores, cujo recrutamento massivo por concurso centralizado visando a constituição de uma reserva de recrutamento foi desencadeado já no fim da legislatura, e cujo quadro remuneratório defende deve ser alterado. Simpatizo com a postura, mas convirá conferir como se chegou até aqui e, independentemente do que seja de esperar da recriação de um departamento ministerial próprio para a Administração Pública e da escolha da respectiva titular, discutir possíveis soluções.
Essencialmente, uma criação do 25 de Abril
Já tive ocasião de escrever no Jornal Tornado que os desenvolvimentos pós-25 de Abril em matéria de Reforma Administrativa e sobretudo de adopção de políticas de função pública dão sequência a preocupações do Grupo de Trabalho nº 14 – Reforma Administrativa (1965-1969) e do “Marcelismo”. Uma das vertentes desse desenvolvimento é a criação e consolidação de carreiras ditas “técnicas”, ou “técnicas e técnicas superiores”, acessíveis estas respectivamente a diplomados por cursos superiores não conferentes do grau de licenciatura e a licenciados. Tendo tido ocasião de estudar os percursos de alguns dos protagonistas do que poderíamos chamar de proto-reforma administrativa tive a surpresa de constatar que na Direcção-Geral da Contabilidade Pública antes da sua nova legislação orgânica de 1961, os licenciados, tal como outros funcionários, eram admitidos como terceiros-oficiais e progrediam até primeiros oficiais, podendo aceder a chefes de secção e a chefes de repartição, que o licenciado Fernando da Silveira assume um grande papel no processo a partir de um lugar de Chefe de Secção da Direcção-Geral de Serviços Eléctricos, que vem a deixar por um lugar de Secretário da Junta de Hidráulica Agrícola, e que o licenciado Carlos da Silva Gonçalves é chefe de repartição na Direcção-Geral do Ensino Primário. Os titulares de cargos deste tipo que não tenham sido integrados em carreiras específicas mais valorizadas acabam por ficar arrumados nas carreiras técnicas superiores, regulamentadas em 1979 com quatro categorias – técnico superior de 2 ª, de 1º classe e principal, e assessor, todas com conteúdos funcionais diferenciados. Uso o plural porque foram sendo criadas carreiras técnicas superiores com o mesmo conteúdo funcional e perfil remuneratório com base em áreas de habilitação específicas (mas só muito raramente como carreiras especiais mais valorizadas como sucedeu no caso da informática).
O modelo foi funcionando sem grandes problemas durante quase trinta anos, notando-se a partir de certa altura uma rarefação de efectivos na categoria de ingresso – técnico superior de 2 ªa classe, por força das restrições à realização de concursos externos- isto é, abertos a não vinculados à Administração Pública – cujo efeito útil foi sobretudo empurrar os serviços para contratações a “recibo verde”. As possibilidades de desenvolvimento de carreira mediante concurso foram alargadas com a criação da categoria de assessor principal. O denominado Novo Sistema Retributivo de Cavaco Silva / Isabel Corte Real permitiu progredir remuneratoriamente em cada categoria da carreira através de mudança de escalão baseada em tempo de serviço. Em todo o caso, começou a ser feita pressão para a conversão de quadros piramidais em quadros de dotação global, e, com a ajuda da supressão – cuja razão nunca alcancei – da exigência de apresentação e discussão de trabalho nos concursos para a categoria de assessor uma grande parte do pessoal que subsistia na carreira estava em 2005 na expectativa de, num prazo mais ou menos largo, a terminar próximo do topo. Acresce que sendo comum o recrutamento dos melhores técnicos superiores – ou dos mais bens relacionados pessoal ou politicamente – para o exercício de funções dirigentes, muitos destes acabaram, por força do sistema de garantias legalmente instituído – por serem recolocados, sem dependência de concurso, como supranumerários nas categorias superiores da carreira à medida que perfaziam o tempo de serviço legalmente previsto. Como se compreenderá esta acumulação de pessoal nas categorias superiores, muitos deles antigos dirigentes, tornava difícil atribuir-lhes serviço compatível e colocá-los na dependência de dirigentes mais jovens e com menos “galões”.
A destruição da carreira técnica superior e suas consequências
A adopção, em 2007 e 2008, de um novo regime de vínculos, carreiras e remunerações veio a traduzir-se num conjunto de decisões que mudaram completamente a fisionomia do pessoal técnico superior, o qual
- ficou fora do regime de nomeação e sujeito ao do “contrato de trabalho em funções públicas“ apesar de a sua intervenção ser reputada essencial na preparação das propostas dos serviços aos membros do Governo;
- assistiu à integração de numerosas carreiras e categorias numa única carreira técnica superior;
- passou a englobar o pessoal antes qualificado como “técnico”, titular de curso superior sem a qualificação de licenciatura, o que de algum modo é coerente com a alteração, feita por essa altura, da denominação dos graus académicos;
e, o que inspira alguma perplexidade, mas tem correspondência no tratamento adoptado para as outras carreiras gerais regulamentadas na altura
- se viu enquadrado numa carreira horizontal, unicategorial, passando a existir uma única categoria “técnico superior”, na qual foi integrado todo o pessoal ao serviço, incluindo o que, em regra mediante concurso, já tinha cumprido o seu cursus honorum para aceder às categorias de assessor e de assessor principal.
Portanto deixa de haver diferenciação de categorias e responsabilidades funcionais entre o pessoal integrado na carreira para passar a haver apenas diferenciação a nível de remunerações, que resulta das posições atingidas à data da integração na nova carreira geral, da progressão por avaliação de desempenho ou acto de gestão, e da negociação de remunerações com os candidatos selecionados por concurso, facultando-se de algum modo, pelo menos em teoria, aos responsáveis pelos organismos uma gestão de pessoal com traços “empresariais”.
Enquanto que a Secretaria de Estado da Administração Pública preparava esta “revolução” no Ministério da Educação uma equipa de professores do Ensino Superior – a Ministra Maria de Lurdes Rodrigues, os Secretários de Estado Jorge Pedreira e Valter Lemos e o “conselheiro” João Freire – oriundos de um ambiente de marcada hierarquia académica tentava impor nos ensinos básico e secundário uma carreira diferenciada em “professor titular” e “professor”, com atribuição de algumas responsabilidades de enquadramento aos primeiros. Bem viria a falar Maria de Lurdes Rodrigues da “enorme resistência dos professores à diferenciação” mas no contexto concreto do ensino nesses níveis as funções são exercidas com uma autonomia individual bastante marcada e não é de estranhar que os sindicatos lhe tenham conseguido opor a palavra de ordem “uma só categoria, professor”. Mas o que volvidos estes anos me continua a parecer bizarro é que nas negociações da função pública o mesmo governo viesse a exigir “uma só categoria, técnico superior”, o que favorecia, é certo, uma gestão muito mais simplificada da carreira.
De qualquer forma as dificuldades financeiras, que levaram aos cortes dos vencimentos mensais e dos subsídios de férias e de Natal, também levaram à suspensão das progressões, quer por avaliação de desempenho quer por acto de gestão, bem como à não aplicação das normas sobre negociação de remunerações por altura das admissões. As vantagens da simplificação operada não foram evidentes e a anomia caracteriza neste momento uma carreira que já foi central no funcionamento da Administração, inclusive porque o PREMAC se traduziu numa redução do número de dirigentes, sem que os técnicos superiores mais experientes estejam à vontade para coordenar a acção dos outros. E quantos destes técnicos superiores mais experientes se terão aposentado de 2007 a 2019? Depois do desastre da floresta de Teutoburgo contra os germanos, Augusto bem pediu ao comandante das tropas romanas que lhe devolvesse as suas legiões aniquiladas. António Costa não está numa situação muito melhor em relação aos técnicos superiores.
Possibilidades
Para além de se melhorar o quadro remuneratório dos técnicos superiores, julgo que, sem reconstruir necessariamente uma carreira pluricategorial clássica em que se vai progredindo a partir da base, será de criar uma categoria de tipo assessor para a qual se recrutaria pessoal habilitado com o grau de doutor ou com experiência profissional comprovada dentro ou fora da Administração Pública, ao qual não seriam confiadas funções de chefia de unidades orgânicas mas apenas a coordenação de grupos de trabalho ou de delegações a reuniões da administração europeia que se situassem dentro da sua área de experiência, enquadrando / transmitindo conhecimento aos restantes participantes, a elaboração de informações – proposta sobre assuntos mais complexos ou a formulação de pareceres que constituíssem como que uma segunda opinião sobre assuntos tratados em informações – proposta já com despacho de transmissão de dirigentes intermédios, as quais subiriam ao dirigente máximo – e, sendo caso disso, aos membros do Governo – acompanhados dessa opinião.
Tudo isto com um cuidado que começa a ser observado em pelo menos uma das poucas instituições de elite com que contamos, ou seja o de garantir que antes de uma qualquer intervenção todos os protagonistas deixam exaradas por escrito eventuais ligações com o assunto ou com os agentes envolvidos, sejam ou não, na sua perspectiva, geradoras de incompatibilidades. O ter um corpo técnico superior com origens mais diversificadas que as tradicionais e atreito a uma natural rotação pode ser positivo, mas coloca algumas exigências de controlo.
Sob Cavaco Silva a Direcção-Geral de Administração Pública integrada nas Finanças ficou sujeita às Secretarias de Estado do Orçamento.
Depois de ter reestruturado no quadro do PRACE o seu Ministério sem qualquer redução de efectivos, como teve, na altura, o cuidado de destacar.
Ambas as vertentes do procedimento – concurso de reserva de recrutamento, concurso centralizado – têm sido equacionadas na doutrina e sido acolhidas em alguns dos pacotes legislativos que, sob o actual regime constitucional têm regulado os concursos da função pública mas não é muito comum a sua utilização para o recrutamento de técnicos superiores, onde se costuma aceitar que cada organismo deve ter um papel predominante na definição das suas necessidades e na escolha dos candidatos.
Viria a ser transitoriamente Director de um Gabinete de Organização do Ministério das Corporações e Segurança Social, onde trabalhou directamente com o Ministro Joaquim da Silva Pinto e docente do Instituto Superior de Economia, bem como procurador à Câmara Corporativa em 1973-1974, reaparecendo como “Técnico Superior” da Agricultura no pós 25 de Abril em artigo publicado na Revista da Administração Pública.
Ver as Actas e Documentos publicadas pela Secretaria-Geral do Ministério das Finanças no Arquivo Digital e o meu trabalho As Secções Nacionais Portuguesas do Instituto Internacional de Ciências Administrativas (1908-2012), Fevereiro de 2019.
O que terá levado o Sindicato dos Técnicos do Estado, da área da UGT, ao contrário da FESAP, também da área da UGT, a não subscrever o acordo que deu origem ao que viria a ser a Lei nº 12-A/2008, de 27-2.
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