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Sábado, Dezembro 21, 2024

Raul Seixas faria oposição a Bolsonaro

Se estivesse vivo em 2019, Raul Seixas completaria 74 anos, se posicionaria contra o governo Bolsonaro, continuaria fazendo muitas loucuras e daria a cara à tapa contra a censura cultural. É o que afirmam os jornalistas Carlos Minuano e Jotabê Medeiros, autores de duas novas biografias sobre o Maluco Beleza: Raul Seixas – Por Trás das Canções (Editora Record), de Minuano; e Raul Seixas – Não Diga que a Canção Está Perdida (Editora Todavia), de Medeiros.

No livro de Minuano, mais voltado às histórias que explicam as canções de Raul, é possível descobrir causos inéditos e bizarros do compositor baiano. Medeiros, que há dois anos lançou uma biografia sobre Belchior, promete um caráter mais ensaístico para estudar o legado de Raul.

Mas ambos os livros apostam em mostrar o lado humano de Raul Seixas, para além da imagem tresloucada, explorando sua faceta de produtor da gravadora CBS – fase em que foi responsável por lançar cantores bregas de sucesso, como Odair José e Diana. Além disso, o músico é retratado como o pensador político e contracultural que foi: mesmo com 11 canções censuradas, Raul nunca desistiu de pôr mensagens políticas em suas letras.

Raul Seixas é autor de grande sucesso no Brasil. Seu disco mais popular, Gita, chegou a vender 600 mil cópias e o bordão “Toca Raul!” continua vivo em diversos bares em que um hippie lembra do roqueiro que misturou Elvis com Luiz Gonzaga e foi de ícone da contracultura a hitmaker de programas infantis.

Ouro de tolo

Um dos relatos inéditos que o livro de Minuano traz é sobre uma turnê que Raul fez nos garimpos Marupá e de Itaituba, no Pará, em 1985. Em quatro dias de show, ele chegou a sair escoltado pelo Exército e quase levou tiro de garimpeiro. Uma pequena parte dessas aventuras foi narrada na canção Banquete de Lixo, do disco Panela do Diabo, feito em parceria com Marcelo Nova, líder do Camisa de Vênus.

Raul canta:

“E lá em Serra Pelada, ouro no meio do nada
Dor de barriga desgraçada resolveu me atacar
O show estava começando e eu no escuro me apertando
E autografando sem parar”.

O show ao qual se refere e o de Marupá, em um prostíbulo chamado Califórnia.

Embriagado, Raul mal conseguia cantar. A coisa piorou quando um homem o viu tomando insulina e espalhou a notícia de que Raul estava se drogando. Após terror, pânico, tiros e a chegada da polícia, a banda tentou tocar. Mas o Maluco Beleza terminou a noite no banheiro, onde se escorava na parede com uma das mãos e distribuía autógrafos para a fila de fãs com a outra.

Na mesma ocasião, depois de voar com um piloto conhecido como João Maconha, Raul e companheiros foram recebidos por garimpeiros armados com pistolas, metralhadoras e fuzis, que dispararam para o alto assim que a banda pousou. “Essa história nos garimpos me encantou pela quantidade de detalhes que nunca haviam sido relatados”, comenta Minuano. “E ainda estão aparecendo novas histórias sobre essa turnê. Tem muito material. Acredito que vou fazer um documentário sobre esses episódios ainda.”

As viagens pelo garimpo aconteceram a bordo de aviões teco-teco — todos conduzidos por pilotos embriagados. Um deles deixou Raul e seus companheiros (todos bêbados) brincarem de piloto, até o avião começar a perder altitude. “Parece que naquela época era normal os pilotos viajarem desse jeito na região amazônica. E, de fato, vi diversas reportagens falando sobre acidentes aéreos na região”, conta Minuano.

Em Itaituba, Raul fez dois shows. Na primeira noite, tocou três músicas e caiu bêbado no palco. A decepção do público, narra Minuano, levou a mais um tiroteio – e o baiano teve de sair escoltado pelo Exército. No show seguinte, com a presença dos militares, o roqueiro cantou Mamãe Eu Não Queria, com versos como:

“Não quero bater continência
Nem pra sargento, cabo ou capitão
Nem quero ser sentinela, mamãe
Que nem cachorro vigiando o portão”.

Não acabou bem. “Foi uma viagem muito rock’n’roll, num tempo em que Raul já estava desacreditado”, diz Minuano. “E o saldo dela foi um pouco de ouro, apreendido pela Polícia Federal quando eles voltaram”, conta.

A mosca na sopa

O Raul Seixas que cantava provocações para militares é o mesmo que teve 11 músicas censuradas pela ditadura e, ainda assim, conseguia pôr críticas ao governo até mesmo em canções infantis, como Carimbador Maluco. “Ele fez músicas no pior momento da ditadura militar. E, diferente do que muitos pensam, Raul era politizado demais. Não era um cara que reivindicava uma corrente política como militante, mas tinha uma consciência política muito clara”, diz Jotabê Medeiros.

“Mesmo com músicas censuradas, ele continuou lançando canções que facilmente poderiam levá-lo à prisão. E nem por isso retrocedia”, diz Medeiros. “Muita gente relaciona isso à fase dele com Paulo Coelho, mas na verdade ele já fazia isso antes da parceria, em canções como Ouro de Tolo”.

Minuano acredita que alguns fãs precisam atualizar Raul Seixas para os dias atuais. “Tem muito fã que segue uma espécie de raul-seixismo, tratando como ciência ou religião. Mas é preciso fazer algumas releituras para dar uma repaginada. Eles repetem o que Raul falava como se fosse uma Bíblia, mas ainda de forma contraditória. Seguem como religião, mas não se atentam à mensagem”, comenta.

Nessa proposta de atualizar Raul Seixas, Medeiros e Minuano concordam que ele estaria incomodado com o cenário político brasileiro. “Raul jamais admitiria uma sociedade que vê a censura como algo corriqueiro, como temos nos dias de hoje, com casos escabrosos. Estaria puto com tudo isso, não suportava cerceamento”, diz Medeiros. “Ele estaria onde sempre esteve: no front, brigando, dando a cara à tapa”, comenta Minuano.

Embora tenha audiência morna nos serviços de streaming, Raul tem potencial para ser redescoberto e idolatrado por novas gerações, assim como aconteceu com Belchior. “Existem mais de mil fã-clubes dele. Os fãs do Raul envelheceram, mas existe uma potência de renovação aí. Se alguém acender a fogueira, ele volta com força”, diz Medeiros.

A faísca para essa fogueira, talvez, seja justamente o momento político. “Músicas como Sociedade Alternativa haviam perdido o sentido para mim há dez anos. Mas, nessa época de perseguições, volta a fazer sentido. A política torna as canções de Raul mais fortes”, diz Minuano.

Não é só o caráter político que traz frescor para Raul, 30 anos após à sua morte. Antes de ser o famoso cantor, ele passou fome no Rio de Janeiro até conseguir emprego de produtor na gravadora CBS. Foi lá que misturou elementos, produziu artistas bregas de sucesso, experimentou muito. “O que faz ele chegar até aqui é a qualidade de sua obra, que sempre teve atualidade. Ele viu coisas do Brasil com análise muito profunda, com um caráter de mestiçagem muito forte, tal como fizeram Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro – seus ídolos”, diz Medeiros.

Na opinião do biógrafo, além da identidade nacional, a música de Raul traz certa universalidade: “Sua música seria moderna na Rússia, em Praga, em qualquer lugar”. Para Minuano, mais que um bom compositor, um maluco ou um aventureiro, Raul foi filósofo. “Entrevistei dezenas de pessoas e não encontrei ninguém que falasse mal dele. Apesar de ter detonado a própria saúde com drogas, foi capaz de compor músicas iluminadas, com mensagens positivas”, afirma o autor.

“Raul não é um doidão. E alguém que procurou a liberdade”, agrega. “Existe um cancioneiro muito grande de Raul Seixas a ser descoberto. A capacidade e a engenhosidade de camuflar mensagens em suas músicas simples é surpreendente. Sempre passou recados políticos, críticas sociais e filosofia profunda.”


Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

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