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Segunda-feira, Novembro 25, 2024

A maldade turca? a sobrevivência dos povos? a rapacidade dos lideres?

Beatriz Lamas Oliveira
Beatriz Lamas Oliveira
Médica Especialista em Saúde Publica e Medicina Tropical. Editora na "Escrivaninha". Autora e ilustradora.

Aos cinquenta séculos da história da Síria, documentada pela arqueologia, podemos assinalar, por escolha aleatória, que já em 990 A.C. os sírios se uniram sob a liderança de Damasco para formarem uma grande nação.

Posteriormente, a região foi uma província do Império Romano, que já não incluía a parte oriental do antigo Império Selêucida, então dominada pelos persas. Em 636, o domínio da região passou para os árabes, liderados pelo califa Omar.

A cidade de Damasco passou a ser a capital do mais poderoso império da época, o Califado Omíada.

Estou a escrever sobre dados históricos sentindo-me como a rã que dá grandes saltos sobre o mapa da História, porque compreendo que as pessoas que só ouvem notícias aos bochechos pelas televisões nunca conseguiriam entender os sobressaltos históricos de um grande país. Estudar história para mim é um prazer. Será uma grande seca para muita gente. Mas para ter opiniões é preciso estudar! Salto alguns séculos por aqui e por ali, porque resumir cinco mil anos da história de um país é obra!

Vamos ao século XX. Vamos tentar ver alguns acontecimentos que podem ser elucidativos e exemplares:

Lembro Alexandretta e Cilicia/ Çukurova. Lembro o genocídio arménio. Lembro Chipre em 1974. Lembro o deslocamento sírio e arménio de Kassab na Síria em 2014. Kassab, uma idílica e exuberante zona montanhosa  fica perto da fronteira com a Turquia, é o lar ancestral dos arménios, etnia minoritária da Síria, cristãos que vivem nesta terra há mil anos. Mas o ataque dos rebeldes jihadistas provocou um êxodo desta aldeia e das zonas vizinhas das aldeias vizinhas.

Vamos falar de Hasekeh, Kamishli e Idleb, agora em Outubro de 2019. Atitudes e comportamentos turcos de triste memória. A culpa não é dos turcos. Talvez possa ser dos seus dirigentes.

Alexandretta foi tirada à Síria pela Turquia e pela França. No início da Primeira Guerra Mundial na correspondência entre Sherif Hussein e Mac. Mahon, lê-se que o primeiro pediu que a Cilicia/ Çukurova, região hoje com 6 milhões de habitantes, fosse devolvida à Síria após a queda do Império Otomano. Esse pedido foi negado. Em 1921 num gesto de reconciliação da França com o Império Otomano, cento e sessenta mil quilómetros quadrados (aproximadamente a área da Síria agora) foram cedidos à Turquia. Sim, terra síria cedida à Turquia pela autoridade francesa. Tal como quando os britânicos entregaram a Palestina aos judeus ( Declaração de Balfour, 1917) e votação nas Nações Unidas em 1948 .Os habitantes da Cilícia eram naquela época árabes, arménios curdos e circassianos. Já antes os arménios tinham sido expulsos de Cilícia à força e deportados para Aleppo, Damasco e Beirute. Sob o mandato francês, o retorno arménio à Cilícia foi facilitado e relações foram estabelecidas, unicamente preocupadas com o retorno dos arménios a Cilícia. Isso foi feito não porque os arménios tinham o direito de retornar a Cilícia (e fizeram-no), mas porque os franceses queriam enfraquecer o domínio otomano na área, devolvendo força e protagonismo às suas etnias originais. Em julho de 1919, muito poucos arménios permaneceram em Damasco. A situação dos arménios na Cilícia melhorou porque os franceses os usaram para solidificar o domínio francês sobre a área.

Os arménios naquela época estavam convencidos de que tinham a simpatia francesa e esperavam estabelecer uma área de auto governo lá.

Houve a ideia de utilizar arménios para criar uma milícia ou corpo de exercito arménio na Cilìcia mas um ano depois os mesmos franceses estavam a desmantelar essas milícias e a perder o controle militar da zona que voltou a cair novamente sob o poder turco com o acordo de Ancara de 1921. A Turquia reconhece o mandato francês sobre a Síria porque isso lhe convém. A França fez isso em um gesto de boa vontade para com a Turquia de Mustafa Kemal Atatürk na esperança de que isso paralisasse qualquer aproximação da Turquia à Rússia soviética.

Esse acordo específico vai trazer mais tarde péssimos resultados para a Síria. Ao oferecer a Cilícia à Turquia, as fronteiras naturais do norte da Síria foram empurradas para o sul a 50 km, dando assim à Síria uma fronteira fluída com a Turquia. Fronteira muito difícil de proteger contra um vizinho muito perigoso. No Acordo de Ancara a França cede ilegalmente parte de um país sob seu mandato a um país estrangeiro, ou seja à Turquia sem sequer a presença de um representante da Síria. Ao perder a Cilícia, a Síria perdeu uma área muito produtiva e geograficamente importante. Também perdeu suas próprias fronteiras naturais sólidas com a Turquia. As promessas da Turquia de proteger diferentes etnias revelaram-se falsas, pois a Turquia forçou seu deslocamento e cometeu genocídio. Em 1923, todas as diferentes etnias foram arrancadas das suas terras e seu dinheiro apreendidos pela Turquia. Mais importante ainda, a água permaneceu nas mãos da Turquia e, desde então, até os dias atuais, a Turquia usou essa questão politicamente para pressionar a Síria e o Iraque.

Os principais rios do país são compartilhados com os países vizinhos, e a Síria depende em grande parte da água da Turquia através do Eufrates e seus afluentes. O alto crescimento populacional e a urbanização crescente aumentou a pressão sobre os recursos hídricos, resultando em esgotamento e poluição das águas subterrâneas, por exemplo, em Ghouta, perto de Damasco. Não existe uma estrutura legal para a gestão integrada dos recursos hídricos. As instituições encarregadas da gestão destes recursos são fracas, altamente centralizadas e fragmentadas entre sectores, muitas vezes não têm poder para impor regulamentações.

Assim se explica porque é que a estação de água de Alouk, que fornece quase meio milhão de pessoas na cidade de Al-Hassakeh e arredores ficou fora de serviço nos últimos dez dias, embora com a ajuda do Crescente Vermelho Árabe Sírio (SARC), e especialistas em água e eletricidade, e reparos temporários fizeram com que a água segura corra novamente. E é através dessas fronteiras que Erdogan está a enviar os seus mercenários e terroristas para causar estragos e destruição na Síria.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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