Os protestos que reuniram mais de 1 milhão pessoas nas ruas do Chile trouxeram de volta a memória de uma personalidade essencial da arte e do ativismo político mundiais: Víctor Jara. Em meio às manifestações de sexta-feira (25), em frente às escadarias da Biblioteca Nacional, um grupo de violonistas tocou para a multidão El Derecho de Vivir en Paz, uma das canções mais populares de Jara, que foi preso, torturado e depois fuzilado pela ditadura do general Augusto Pinochet.
A canção, lançada em 1969 como um protesto pela intervenção americana no Vietnã, derrubou o reggaeton e chegou na semana passada ao topo da lista das 50 músicas virais do Spotify do Chile. A música se tornou um dos hinos dos grandes protestos do povo chileno, que pede reformas sociais, após décadas de hegemonia do neoliberalismo no país.
Detido em 12 de setembro de 1973, após um golpe de militar que derrubou o presidente Salvador Allende, Víctor Jara foi um dos muitos presos políticos levados ao Estádio Nacional de Futebol, onde alguns foram torturados, espancados e executados. Mesmo com as mãos quebradas pelos torturadores, ele continuou a cantar uma música em apoio ao Partido da Unidade Popular deposto. Após receber golpes brutais, só parou de cantar após um tiro na cabeça, seguido de uma rajada de metralhadora. Ao ser encontrado, três dias depois da morte, seu corpo apresentava perfurações de 44 tiros.
Professor, poeta e diretor de teatro, além de expoente da Nueva Canción Chilena e ativista político, Víctor Jara nasceu em 1932, em Chilán Viejo. Filho caçula de um lavrador (Manuel) e de uma cantora semi-profissional (Amanda), ele cresceu na extrema pobreza, em uma fazenda que operava em regime quase feudal. Aos 7 anos, já acompanhava o pai para trabalhar nos campos. Quando o alcoolismo de Manuel se agravou e uma panela de água fervente caiu sobre a irmã, ele se juntou à mãe e se mudou para Santiago, em busca do único hospital equipado para tratar as queimaduras da menina.
Aos 15 anos, sua mãe morreu de derrame cerebral e ele foi para um seminário. Jara ainda tentou uma carreira no exército, mas os pendores artísticos foram mais fortes – e ele foi estudar teatro na Universidade do Chile. Em 1957, um encontro com a cantora Violeta Parra o fez voltar-se definitivamente para a música popular.
Desde o início, Jara usou as habilidades de composição para dar voz à classe trabalhadora e camponesa do Chile. Te Recuerdo Amanda (gravada por Mercedes Sosa, Joan Baez e Ivan Lins), Manifesto, Preguntas por Puerto Montt e Venceremos (para a campanha de Allende) foram algumas das célebres canções do cantor e compositor, que via na eleição do novo presidente, o caminho para a redução das desigualdades sociais do Chile.
Seus sonhos começaram a desmoronar quando, em 11 de setembro de 1973, uma junta militar chefiada pelo almirante Toribio Merino e pelo general do exército Augusto Pinochet, auxiliada pelos Estados Unidos, derrubou Salvador Allende e lançou um golpe brutal. Após enterrar Víctor Jara, sua viúva, Joan, foi para o exílio, levando gravações inéditas de suas músicas. Nos anos 1980, elas circulariam clandestinamente em fitas cassete pelo Chile.
Renascimento
A notoriedade de Jara como um dos maiores nomes da música de protesto da história não demorou a se consolidar. Em 1974, o cantor folk americano Phil Ochs, que conhecera Jara durante uma turnê na América do Sul, organizou um concerto beneficente em sua memória em Nova York. Intitulado An Evening with Salvador Allende, o show contou com as participações de Ochs, Bob Dylan, Pete Seeger e Arlo Guthrie.
Em 1980, um dos grandes grupos do punk rock, o Clash, mencionaria o chileno na letra da canção Washington Bullets, de seu álbum triplo “Sandinista!”. “Por favor, lembre-se de Víctor Jara / no estádio de Santiago / é verdade, são essas balas de Washington novamente”, cantava o vocalista Joe Strummer . Já em 1989, o grupo escocês Simple Minds dedicou seu álbum Street Fighting Years a Jara.
Em 1987, em seu célebre álbum The Joshua Tree, o U2 também mencionaria o poeta, na canção One Tree Hill. Nela, o vocalista Bono Vox entoou o verso “Jara cantou, sua canção é uma arma nas mãos do amor”. Trinta anos depois, em 2017, quando se apresentou em Santiago com a banda, Bono introduziu a canção dizendo: “A próxima canção é para Víctor Jara. Ele lutou contra a injustiça e pagou o preço mais alto”.
As homenagens seguiram novo milênio adentro. Em 2001, no Chile, foi editado o álbum Tributo Rock, no qual bandas gravaram as composições do artista. Os brasileiros Ratos de Porão releram Canto Libre. Com a redemocratização do Chile, começou um movimento de reabilitação pública da imagem do artista. Em 2003, 30 anos após seu assassinato, o estádio onde ele foi morto foi rebatizado como Estádio Víctor Jara.
Dez anos depois, em seu primeiro show na América do Sul em mais de 30 anos – que coincidiu de ser em Santiago, em 12 de setembro, dia em que se lembrava os 40 anos do assassinato de Víctor Jara –, o cantor americano Bruce Springsteen fez uma tocante homenagem, cantando em espanhol sua Manifesto. “Em 1988, tocamos no show da Anistia Internacional em Mendoza, na Argentina, mas o Chile estava em nossos corações”, disse Springsteen.
“Conhecemos muitas famílias de desaparecidos que tinham fotos de seus entes queridos. Foi um momento que fica comigo para sempre”, agregou o cantor. “Se você é músico político, Víctor Jara continua sendo uma grande inspiração. É um presente estar aqui, e eu tomo isso com humildade.”
Em 2018, o Chile condenou nove militares pela morte de Víctor Jara. Neste ano, estreou na Netflix ReMastered – Massacre no Estádio, documentário sobre o artista que fala da luta da família, ao longo de mais de 40 anos depois de sua morte, em busca de justiça. “É um dos maiores assassinatos do século 20 não solucionados. É muito importante sabermos os detalhes do que aconteceu”, disse Bono Vox, do U2, em depoimento no filme.
Além de Víctor Jara, as manifestações no Chile trouxeram de volta outro clássico chileno da música de protesto: o grupo Los Prisioneros. El Baile de los que Sobran, uma de suas canções, de 1986, sobre a crise econômica e educacional chilena, caiu como uma luva em meio às reivindicações populares, que nem são tão novas assim.
Jorge González, vocalista dos Prisioneros e compositor da mítica canção, disse à BBC considerá-la ainda válida, mais de 30 anos depois de lançada. “Mas é muito triste que você a continue cantando. Essa música foi criada nas mesmas condições em que foi cantada: no toque de recolher e com balas.”
Texto original em português do Brasil
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