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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

A alma africana se faz presente na música popular brasileira

Sempre é bom lembrar a influência africana na cultura brasileira. Em geral, desprezada, marginalizada, negada. Influência sentida na religião, na culinária, na formação étnica, social, política e cultural. Ainda mais em tempos sombrios como esta passagem histórica com a extrema-direita com o aparato estatal nas mãos. Com apoio da mídia, de parte do Judiciário e da maioria no Parlamento, os extremistas tentam apagar da memória popular a herança africana em nossas vidas.

Os milhões de seres humanos escravizados, trazidos da África, transformaram a cultura brasileira numa das mais diversificadas do mundo. No caso da música popular brasileira então a herança africana extrapola pelos poros.

Afoxé, maracatu, ijexá, coco, jongo, carimbó, lambada, maxixe, maculelê, mas principalmente o chamado primo pobre do jazz norte-americano, o chorinho, o frevo e o samba formando uma identidade nacional que absorveu manifestações de outras culturas como o carnaval para criar algo diferente. Algumas músicas analisadas aqui reportam a essa herança cultural e à história da diáspora negra com sua riqueza cultural e social.

Como a canção África Brasil, de Jorge Ben Jor, gravada com o nome de Zumbi – o último líder do mais famoso quilombo da história do país, o dos Palmares, morto em 1695, no dia 20 de novembro e por isso essa data virou o Dia Nacional da Consciência Negra. Em 1974, dois anos depois de sai composição, foi rebatizada com arranjo musical modificado.

Ben Jor é singular na música popular brasileira ao criar bases para a criação do que se convencional chamar samba-rock, por misturar os gêneros norte-americanos também de matriz africana como o soul, o funk e o rock com o samba.

A poesia da canção sincopada com instrumentação eletrônica e atabaques ressalta a organização quilombola como uma das mais importantes formas de resistência e contraponto ao sistema escravista. Além de denunciar o racismo e a exploração do trabalho escravo dessa população, como nos versos:

“Pois aqui onde estão os homens
Dum lado, cana-de-açúcar
Do outro lado, um imenso cafezal
Ao centro, senhores sentados
Vendo a colheita do algodão branco
Sendo colhidos por mãos negras”

O próprio Ben Jor cantou Xica da Silva, uma escrava alforriada que casou com um contratador de diamantes e se tornou um mito na sociedade local, não habituada a ver uma mulata na alta sociedade. Mentalidade escravocrata que permanece incólume em setores de uma elite rancorosa que não suporta ver pobre viajando de avião ao seu lado.

“Muito rica e invejada
Temida e odiada
Pois com as suas perucas
Cada uma de uma cor… Joias, roupas exóticas
Das Índias, Lisboa e Paris
A negra era obrigada
A ser recebida
Como uma grande senhora”

Já a jovem MC Luana Hansen canta as Negras em Marcha, com participação especial de Leci Brandão, num rap mesclado com instrumentação do candomblé e da umbanda para denunciar a brutalidade com que são tratadas as mulheres negras, na base da pirâmide social, menosprezadas pelo mercado de trabalho, vilipendiadas pelo machismo, sexismo e racismo. Diz uma estrofe dessa pujante poesia cantada com voz marcante e instrumentação arrojada.

“Onde a parcela mais oprimida e explorada da nação
Luta diariamente contra a criminalização
Quer moradia digna, educação e saúde
Pelo tom de pele ninguém nunca te julgue”

Em outra estrofe a compositora e cantora paulista diz que

“A mulher negra vai marchar contra os racistas
Pra acabar de vez com a história dos machistas
Pelo fim do genocídio da juventude negra
Acontece todo dia não finja que não veja”

Luana atualiza o tema ao cantar a luta das mulheres negras que estão cansadas

“(…) do lugar de inferioridade
De conviver com tanta desigualdade
Falta creches, escola, uma mídia igualitária
Enquanto isso a mulher negra vive em condições precárias”

A mulher negra se mobiliza, organiza e segue em frente para defender seus direitos e a vida de seus filhos assassinados diariamente nas favelas e nos bairros pobres.

Gilberto Gil não poderia ficar fora de uma seleção musical que ressaltasse a influência africana em nossa cultura. Aqui tem destaque A Mão da Limpeza. O próprio Gil conta que compôs esse funk (gênero musical dos negros norte-americanos, que se espalhou pelo mundo e ganhou força nas periferias das grandes cidades brasileiras) para desdizer um dito popular criado pelos brancos dominadores de que “negro, quando não suja na entrada, suja na saída”.

O clipe da música mostra Gil com a cara pintada de branco e Chico Buarque de negro interpretando essa canção que ironiza o racismo forjado ideologicamente para massacrar uma população inteira e manter privilégios de uma minoria, quase num apartheid não oficializado.

“Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza”

Considerada a cantora do milênio pela TV britânica BBC, Elza Soares interpreta como só ela sabe o rap A Carne, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti. A música soa como um lamento e a poesia denuncia o genocídio negro para lembrar que 70% dos homicídios no País atingem a população negra, na maioria jovens da periferia.

“A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo de plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos”

E, para finalizar, a lindíssima As Caravanas. de Chico Buarque, pinta o quadro do Brasil atual, onde “gente ordeira e virtuosa” teme a população negra de “torso nu”. O autor faz referência aos navios negreiros da poesia de Castro Alves, comparando-os às prisões brasileiras nas quais a maioria é negra, parda e pobre. Chico atualiza o poema ao denunciar o desejo expresso da elite branca em “bater e matar”, um retrato cruel do racismo brasileiro agora no controle do Estado.


por Marcos Aurélio Ruy, Jornalista | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado


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