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Sábado, Julho 27, 2024

A Arbitragem

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Tive ocasião de revisitar recentemente alguns pronunciamentos sobre os benefícios e malefícios do recurso à arbitragem, como uma entrevista de José Miguel Júdice na qualidade de presidente do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa defendendo a sua maior utilização pelas empresas e sobretudo pela banca e uma posição do PCP reafirmando a exigência de que as entidades públicas deixem de se submeter a tribunais arbitrais donde saem frequentemente desfeiteadas em processos de valor elevado.

Modelos de Administração da Justiça

A Administração da Justiça, tal como a conhecemos em Portugal, assenta numa carreira integralmente dedicada ao exercício de funções de julgamentono quadro de uma organização definida pelo poder legislativo, preenchendo-se os lugares em regra mediante concurso, sem prejuízo de algumas sobrevivências do recurso à nomeação dos magistrados. Espera-se que os tribunais funcionem de acordo com a lei, corrigida pelas instâncias superiores, e com base na formação geral ou especializada ministrada aos juristas em geral, aos candidatos a magistrados ou até a magistrados já em funções, e deseja-se que os valores incutidos de raiz, o profissionalismo e o espírito de corpo garantam o cumprimento das missões e o tratamento justo dos cidadãos. No entanto, cada vez menos se acredita em tal. Há algumas tentativas de abertura da Administração da Justiça, como o recurso a júris, mas deixemo-las de parte. Tenha-se também em conta que, com o desenvolvimento do direito das contra-ordenações, muitas decisões são tomadas por autoridades administrativas – câmaras municipais, reguladores, havendo recurso para os tribunais.

Às vezes oiço falar como modelo alternativo de Administração da Justiça, da eleição popular periódica dos juízes ou na nomeação dos juízes pelo executivo com ratificação pelo legislativo, com inamovibilidade posterior, mecanismo também ensaiado para os órgãos reguladores, mas a experiência dos States não desperta grande entusiasmo.

E há ainda a versão ultra-liberal, no sentido europeu, ou libertária, no sentido americano, da Administração da Justiça, em que os juízes são convidadosad hoce as partes se quotizam para suportar a remuneração do juiz, mesmo em processos de natureza criminal, como Robert A. Heinlein descreve no seu cenário de uma Lua convertida em colónia penal.

Say! Aren’t you Gospodin o ‘ Kelly?
Right.
 Why don´t you judge it ? Oldest looked relieved.
 Will you, Gospodin ?
 I hesitated. Sure, I´ve gone judge at times; who hasn’t ? But don´t hanker for responsability”.

De certo modo a arbitragem está próxima desta visão libertária, na medida em que os interessados são livres de escolherem a jurisdição que querem dirima os seus litígios. No entanto é o Estado que regula os tribunais arbitrais e reconhece os centros de arbitragem: salvo nos casos em que os tribunais arbitrais sejam autorizados a decidir segundo a equidade e não segundo a legalidade, isto é “segundo o direito constituído”, a fundamentação das decisões é semelhante, os juízes, que não são magistrados de carreira, trabalharão com maior flexibilidade, aliviando a carga processual, as decisões serão mais céleres e mais baratas. Aliás revisitar a entrevista de JM Júdice permite identificar factores que, num clima de concorrência, tornam um centro de arbitragem mais atractivo do que outros.

Há certamente por esta via  uma “privatização” da Administração da Justiça que ao  Estado não repugna aceitar, até porque descongestiona os tribunais judiciais.

A Administração Pública perante a arbitragem

Arbitragem administrativa

Os processos nos tribunais administrativos, que nasceram com grandes limitações e cujos juízes começaram por se identificar com a defesa dos interesse do Estado, têm a fama, e o proveito, de serem demasiado demorados, sendo que o Ministério Público e os institutos públicos e autarquias locais que se fazem representar por advogados, não têm propriamente uma postura de facilitar a celebração de acordos. É aliás muito raro, nos processos em que o Estado se vê envolvido, que a sua evolução seja acompanhada por responsáveis políticos, os quais de qualquer forma vão mudando ao longo de sucessivos Governos. A contratação de escritórios de advogados  assegura uma maior atenção a certos processos mas é mais onerosa para o Estado e traduz-se na perda de oportunidades de aprendizagem e de correcção de políticas.

Na minha percepção, uma das áreas que precisa de maior atenção e de maior empenho no recurso à arbitragem administrativa é a do chamado direito de trabalho da função pública, que englobou em tempos a então modalidade – regra de vinculação “nomeação” e o “contrato administrativo de provimento”, e actualmente engloba a “nomeação” e o “contrato de trabalho em funções públicas”. Antes até da consideração da arbitragem de litígios individuais conviria evitar a litigância de massa, propiciada pela propensão das entidades públicas a  não reconhecerem  interpretações da lei mais correctas do que as suas sem  condenação judicial caso a caso e por anúncios de sindicatos de que se propõem “entupir os tribunais” prejudicando todos aqueles que alheios aos conflitos, vêem as suas hipóteses de uma decisão rápida dos seus processos prejudicadas. E é ver como algumas dessas entidades públicas deduzem “excepções” para retardar acções colectivas de defesa de direitos individuais, figura que justamente poderia prevenir a multiplicação de pendências, como o poderia a existência de mecanismos globais ou sectoriais de acompanhamento da aplicação das leis do trabalho na função pública.

Por ocasião da negociação da revisão dos Estatutos da Carreira Docente universitária e politécnica, em 2009, o Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup), a cuja Direcção pertencia na altura, conseguiu fazer passar em cada um dos Estatutos um artigo sobre resolução alternativa de litígios, contemplando a consulta, a mediação e a arbitragem, que, contrariamente ao que sucedeu com muitas outras propostas construtivas,  Mariano Gago aceitou  sem reservas. No entanto a pureza da doutrina, que estipula o carácter voluntário da arbitragem, deixou a adesão  na disponibilidade das instituições de ensino superior público, tendo apenas aderido três politécnicos e nenhuma universidade.

Os Ministérios da Justiça, Cultura e Educação e Ciência (este com muitas restrições e subtraindo o pessoal docente) definiram orientações no sentido da pré-vinculação de serviços deles hierarquicamente dependentes ou por eles tutelados ao Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) mas uma dezena de anos depois parece ter havido uma estagnação. O Artigo 476º do Código dos Contratos Públicos, que admite o recurso à arbitragem, mas é restritivo em relação à arbitragem não institucionalizada, talvez contribua para relançar a vertente de arbitragem administrativa do CAAD. Resta ver se se atenua ou se se agrava a impressão de que nos grandes contratos os árbitros tendem a decidir contra o Estado.

Repare-se que em princípio estamos a falar de tribunais cujas sentenças têm valor equivalente ao das sentenças dos tribunais judiciais de 1 ª instância, admitindo portanto recurso.

Arbitragem tributária

A  arbitragem tributária, lançada ainda antes dos anos da troika, mas que nestes anos foi encarada como uma forma de acelerar a decisão tanto no interesse de uma mais rápida cobrança da receita pública, caso fosse efectivamente devida, como em geral no de uma mais rápida clarificação das obrigações dos agentes económicos, suscita talvez maiores resistências de princípio do que a arbitragem administrativa.

Convém contudo recordar que os tribunais tributários partiram de uma situação ainda mais desprestigiante que os tribunais administrativos em termos de imagem, operacionalidade e imparcialidade:

  • o Ministro das Finanças António de Sousa Franco teve, sob o primeiro Governo Guterres, de tomar a iniciativa de abolir uma série de impostos já extintos, cujo contencioso se arrastava nos tribunais porque os juízes dos tribunais tributários tinham evidentes dificuldades em aliar o conhecimento dos  códigos dos antigos impostos ao dos códigos dos impostos em vigor;
  • na mesma altura os Ministérios das Finanças e da Justiça tiveram de encarar a passagem de juree de facto dos serviços de apoio aos tribunais tributários para a administração do Ministério da Justiça, pois circulavam histórias que davam conta de que os funcionários da administração tributária destacados junto dos tribunais acabavam por auxiliar certos juízes na redacção das sentenças..

Entretanto, a parecer haver enviesamento das decisões dos tribunais arbitrais  a favor dos contribuintes, tal não significa  necessariamente que os árbitros menosprezem os interesses da Fazenda Nacional. Os próprios tribunais tributários já tendiam, por exemplo, a desatender as razões da inspecção tributárias para a imposição de liquidações correctivas.

Cabe referir que, contrariamente à disciplina genericamente vigente para a arbitragem administrativa, na arbitragem tributária as decisões dos tribunais arbitrais, só em casos muito circunscritos admitem recurso (para o Tribunal Constitucional ou para o Supremo Tribunal Administrativo) o que no caso de processos em que estejam em causa valores muito elevados pode limitar a actuação da Fazenda Nacional.

Os perigos para o Estado

Na generalidade das situações a arbitragem pode traduzir-se numa melhoria do acesso à justiça por parte dos particulares e das instituições ou empresas de pequena e média dimensão, isto é das que não têm normalmente poder para influenciar os processos de decisão.

O Estado e as entidades públicas em geral podem, e muito bem, ver posto em causa o poder de decisão desproporcionado que lhes permite actuar sem fazer compromissos nem calcular riscos  mas podem ser injustamente afectados porque os decisores não valorizam as perdas que lhes impõem do mesmo modo as perdas que imporiam aos particulares, instituições e empresas.

E sobretudo, há a questão das “portas giratórias”: de modo geral valorizamos o prestígio dos grandes advogados, dos grandes economistas, dos grandes especialistas, mas não nos apercebemos de toda a dimensão da sua circulação entre vários papéis e da forma como esta circulação os poderá afectar enquanto árbitros. Já o juiz de carreira está sujeito a restrições de exclusividade que o podem afastar da “realidade” mas em princípio favorecem a sua isenção.

Há anos, num processo de avaliação do imobilizado adstrito a uma concessão pública que estava em risco de chegar ao fim, o Estado indicou para a comissão de avaliação um “grande advogado” de elevados rendimentos, dos que não perdiam uma única reunião de Assembleia Geral  cuja presidência devessem assegurar. O homem chegou à comissão de avaliação e rapou não de uma calculadora mas de uma espécie de sentença arbitral pré-redigida… em desfavor do Estado. Julgo que este ainda recorreu. Mais tarde tentei saber junto do departamento governamental que fizera a indicação qual a razão da escolha da personagem, mas explicaram-me que a decisão tinha vindo de fora, julguei na altura que do núcleo político do Governo.

Portanto, cuidado com a constituição de tribunais arbitrais que envolvam interesses do Estado quando estejam em causa valores elevados ou as sentenças arbitrais sejam irrecorríveis.

DN de 1 de Maio de 2016, entrevista a Joana Petiz
Como sucede no caso do Tribunal de Contas com o Conselheiro-Presidente e, afinal, no caso do Tribunal Constitucional.
The Moon is a  harsh mistress.
Cuja redacção, diga-se, foi, a pedido do sindicato, sugerida pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).
Suportado numa associação criada com apoio da Confederação do Comércio, de um conjunto de sindicatos do Ministério da Justiça e do acima citado SNESup, o que foi pretexto para a  desconfiança de algumas instituições empregadoras.
A abolição gerou uma perda ainda substancial de receita.
As instalações e serviços de apoio aos Tribunais de Trabalho também estiveram originariamente na dependência do Ministério das Corporações.
Passado algum tempo, o episódio do queijo limiano em que foi produzida uma decisão em consonância com orientações do Secretário de Estado Adjunto do Ministério da Economia, Vítor Ramalho, levou à passagem do Instituto Nacional de Propriedade Industrial para a tutela do Ministério da Justiça.

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