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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

A armadilha da dívida

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista
  1. Não há casos isolados

A resposta dos governos europeus à crise originada pela Covid-19 fez explodir a dívida pública a uma velocidade e para níveis nunca vistos. Será, como vão afirmando políticos, economistas e comentaristas tradicionais, motivo para todos ficarmos alarmados?

A adequada percepção da origem e do papel da dívida pública obriga a concentrar a análise nos próprios fundamentos da ordem financeira capitalista e a perceber se somos caso único.

O endividamento do país é frequentemente destacado pela negativa e recorde-se como ainda há bem pouco tempo éramos conhecidos como membro do clube dos “PIIGS” (acrónimo que designa os países pobres do sul da Europa, como Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha, que apresentavam elevados níveis de endividamento), quando na actualidade países como a França ou o Reino Unido já apresentam níveis de endividamento que ultrapassam os 100% do PIB, há semelhança do conjunto da Zona Euro.

Ainda assim, a diferença para outros países europeus, como o Reino Unido ou a Holanda, onde a dívida pública não aumentou nas mesmas proporções, mas o rácio da dívida privada (famílias e empresas) é muito mais elevado, é que parte desta dívida privada é “securitizada”, isto é, transformada em activos financeiros negociáveis nos centros financeiros (à semelhança do que acontece nos EUA, país de origem da chamada crise das hipotecas “subprime” que esteve na base da crise sistémica global de 2008), o que naturalmente não significa menores níveis de endividamento nas respectivas economias, nem menores riscos de crédito.

Assim, enquanto nos países com maior dívida pública, foram os estados que se endividaram para amortecer o choque das crises, nos outros foram as famílias e as empresas que se endividaram; mas, em termos práticos, o resultado é o mesmo: todos estão fortemente endividados. No entanto, para o factor capital, a crise da dívida (seja ela privada ou pública) representa uma oportunidade imperdível para aumentar, com o apoio dos respectivos governos, o seu domínio sobre as nossas sociedades.

Situação um pouco diferente é a da Alemanha que tem alcançado enormes excedentes comerciais graças a uma política mercantilista (traduzida na compressão da procura interna, no forte investimento nas indústrias de exportação e na redução dos custos em serviços e investimentos públicos) facilitada por um euro desenhado à medida das suas necessidades e assim atinge rácios de dívida privada e pública relativamente mais baixos, que só agora ultrapassou o patamar dos 60% do PIB. Embora a questão dos fundamentos desequilibrados da zona euro tenha vindo a ganhar visibilidade e seja crescente a percepção da necessidade de correcções, estas continuam a ser apresentadas como improváveis, o que, em última instância, até poderá condenar o próprio projecto da moeda única.

Outro caso especial são os EUA que, graças à posição hegemónica do dólar (principal moeda internacional de reserva e de pagamentos), podem-se dar ao luxo de se endividar sem se preocupar muito com o crescimento dessa dívida devido à enorme chantagem que exercem sobre os seus credores (o principal dos quais é a China), que lhes permite inundar as principais economias com os seus títulos do Tesouro, manter o poder de sua moeda e, simultaneamente, condicionar o mundo e em especial as economias que querem submeter.

A forma mais eficaz de os europeus contrariarem o poder hegemónico do dólar seria criar um verdadeiro mercado de “euro-bonds” (títulos de dívida pública emitidos em nome e por conta da UE), para o que seria preciso aprofundar o mercado europeu de capitais, mediante a sua unificação e harmonização, mas sobretudo vencer a oposição de uma Alemanha, não quer conciliar sua dívida com a de estados mais endividados, como a Itália, enquanto se mantém agarrada aos princípios limitativos do ordoliberalismo (teoria económica que está na base do chamado “milagre económico alemão”, defendendo a competição e a livre iniciativa, uma moeda estável e um Estado que garanta igualdade de oportunidades e que combata os monopólios) e dos limites orçamentais (mesmo quando incumpre os limites com os seus crónicos superavits comerciais) que tanto a têm beneficiado.

Mesmo com os sucessivos governos a repetirem há trinta anos os mesmos mantras sobre a desalavancagem do país, por que é que, na realidade, a dívida pública nunca diminuiu? E assim chegamos ao cerne da questão: porque, na realidade, nunca foi sua intenção diminuir o montante da dívida.


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