Hesitei muito antes de me decidir a abordar este tema e foram várias as razões para o fazer…
Primeiro por conhecer um pouco do seu interior (em especial de quem lá diariamente trabalha e tenta, melhor ou pior, alhear-se das polémicas que há demasiado tempo a envolvem), depois por achar que a polémica agora recuperada graças a um relatório sobre a sua actividade (mais um… que não traz especial novidade sobre o que há muito já era conhecido mas ainda não tinha sido devidamente utilizado na chicana político-económica nacional) não mereceria atenção de maior e por último por apenas conhecer o teor do relatório preliminar pelo que a imprensa foi divulgando.
Claro que fui fazendo outras leituras, principalmente de alguns dos habituais comentadores nacionais e foram estes, melhor algumas coisas que estes escreveram, que me levaram a juntar também algumas linhas sobre o assunto que resolvi rotular recorrendo ao título da alegoria realizada em 1994 pelo nosso mais famoso cineasta, Manoel de Oliveira, e que gira em torno do roubo/desaparecimento de uma caixa de esmolas e do que esta representa para aqueles cuja vida dela dependem; afinal, quando no ano passado a jornalista Helena Garrido deu ao prelo um livro sobre o assunto e onde referia as principais “situações” agora reportadas, também lhe deu o título: «QUEM METEU A MÃO NA CAIXA».
Assim, entre a informação que «Auditoria da EY revela perda de 340 milhões na CGD com “Obrigações Caravela”», que a «CGD concedia crédito sem olhar para os riscos das empresas» ou que a «CGD perdeu 1200 milhões em empréstimos de risco», que outra leitura poderia ser feita além daquela que serve para alimentar debates parlamentares? Qual o interesse em lembrar que no período em observação – entre 2000 e 2015 – as diferentes administrações foram sempre integradas por prestigiadas figuras do cenáculo político nacional (PS, PSD e CDS) com origem nos mais respeitados e respeitáveis dos partidos nacionais?
Perante o burburinho causado pela “revelação” do tal relatório preliminar logo surgiram, entre as vozes habituais, Miguel Sousa Tavares a falar numa Caixa sem fundo ou Pedro Marques Lopes a questionar se a Caixa deve continuar pública, cujas distintas abordagens merecem melhor reflexão. O primeiro, depois de recordar a faraónica obra da sede da Av João XXI (tema discutível se equacionarmos os ganhos de eficácia e rentabilidade resultantes do fim da dispersão de pessoas e serviços), levanta, e bem, a questão da banalização da função do banco público quando este, na sequência do processo de reversão da nacionalização do sector bancário, passou a imitar os bancos privados e a copiar-lhe os vícios, ou seja, quando durante um governo de Cavaco Silva e sob a direcção de Rui Vilar e em perfeita contranatura com a sua cultura, se quis apresentar como um banco comercial. O segundo, depois de defender que a intervenção do Estado na economia deve ser feita através de organismos – estará talvez a pensar na famigerada Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), vulgarmente conhecida como Banco de Fomento, criada em 2014 pelo governo de Passos Coelho, mas de actividade quase nula até à actualidade, como reconhece um Conselheiro Nacional do PSD neste artigo – e não de bancos, porque:
…esse tipo de projetos são para ser prosseguidos e implementados não por bancários, mas por políticos ou técnicos das áreas… colocar bancários a conduzir políticas inevitavelmente terá a consequência (…) nem boa política nem boa gestão».
Como se as administrações da CGD não fossem nomeadas por conveniências políticas ou os projectos de investimento não devessem ser sempre avaliados sob critérios de rentabilidade económica e financeira, o que, ao contrários dos bancários, os políticos não fazem, lá acaba dizendo ao que vem quando afirma que a:
…possibilidade da privatização da CGD é uma discussão que importa fazer, mais que não seja para que fique claro quais são as verdadeiras razões para que se mantenha pública quando não passa de um banco como os outros (e não vai mudar enquanto nos mantivermos na UE)…».
Retive estes exemplos de comentário porque revelam, talvez involuntariamente, a origem do que creio ser o verdadeiro problema da CGD – uma completa desadequação para a função a par com uma gestão não comprometida com a Instituição – que se arrasta há demasiado tempo.
Recordemos que esta Instituição, que se prepara para completar 143 anos de existências, começou sob administração da Junta de Crédito Público (JCP) e tendo por missão a recolha de depósitos por imposição legal ou jurídica (depósitos obrigatórios) e das pequenas poupanças; a sua autonomização da JCP, em 1896, e a criação da Caixa de Aposentações sob a sua administração, foram as primeiras etapas no processo de crescimento e consolidação, que conheceria com a reforma de 1929 uma nova fase de extenção da sua actividade para as áreas do crédito.
A sua transformação em Empresa Pública ocorrerá quarenta anos depois (1969), época da qual data a primeira aproximação ao modelo de funcionamento das restantes instituições de crédito, até que em 1992 é transformada em Sociedade Anónima de capitais exclusivamente públicos e a reger-se pelas mesmas normas do sector privado. Estava consumada a completa rotura com os objectivos de prossecução de política económica e social, definidos na sua criação, embora na prática tal já viesse a acontecer há alguns anos. Esta questão não é de todo displicente e é, inclusivamente, utilizada por muitos dos defensores da sua privatização, embora estes recorram a um sofisma quando afirmam que não se pode usar um banco comercial para executar políticas públicas, esquecendo que foi precisamente para isso que ele começou por ser criado e sob essa lógica que funcionou durante quase um século.
E aqui regresso há questão da desadequação da função da CGD, algo que parece tanto mais evidente quanto se fala na estreita ligação entre as suas sucessivas administrações e os poderes políticos vigentes em cada período, os quais, por inépcia ou opção própria, nunca lhe definiram um rumo preciso e ainda menos a dotaram dos meios humanos formados e adequados ao rumo escolhido.
E havia rumo escolhido? Talvez, se lembrarmos que data mais ou menos da mesma altura (meados da década de 1980 e da afirmação da “vocação” comercial da CGD) a adesão à então CEE e à orientação que corria nos corredores que esta pretenderia ver a quota de mercado da CGD, que então ultrapassava os 20%, reduzida para um dígito!
Trinta anos volvidos, já sob vigência da UE (uma UE que tantos entraves criou à recapitalização da CGD mas onde, segundo este relatório do think tank Bruegel, 40% dos maiores bancos europeus são públicos e, claro, a França e a Alemanha, países cujos bancos representam cerca de metade daquele total, têm mais bancos públicos que Portugal) e oito administrações depois (não contabilizo a de António Domingues pela sua efemeridade) a “coisa” continua complicada e talvez nem a de Paulo Macedo o consiga, mas que no geral e de uma forma ou outra todas se esforçaram nesse sentido não parece restarem grandes dúvidas.
Por último, e porque quando se fala na Caixa logo surge quem recorde que o «Estado injectou directamente mais de 4000 milhões de euros desde 2011 perante prejuízos recorde» mas omita que desde o início da crise do subprime (2007/2008) as ajudas públicas ao conjunto banca nacional já atingiram os 16,7 mil milhões de euros e que se houve evidentes casos de incúria e má gestão na CGD não é menos verdade que esta sofreu um processo de descapitalização devido à incorporação do nacionalizado BPN (2008) e que financiou em milhares de milhões de euros as sociedades que herdaram os activos tóxicos, aqueles que o banco luso-angolano BIC não quis receber quando pagou uns extraordinários 40 milhões de euros pelos activos saudáveis do BPN. Mas o papel da CGD na “reestruração” do sector financeiro nacional não ficou por aqui, nem a responsabilidade pelos desmandos se deve limitar às administrações, eximindo sucessivos reguladores e ministros da tutela.