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Segunda-feira, Novembro 4, 2024

A Carreira de Investigação Científica é verdadeiramente o problema?

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

Um anúncio supostamente auspicioso

José Mariano Gago. Por Fonte, Conteúdo restrito, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?curid=4725637

Na sequência de diversas manifestações de investigadores(i) promovidas pela FENPROF e por outras organizações: ABIC, FSTFPS, SNESup, Investigadores da FCUL, LUPA: LAQV e UCIBIO Post-Doctoral Association @NOVA, Post Doctoral Association ITQB, Associação de Combate à Precariedade: Precários Inflexíveis, Universidade Comum, NInTec: Núcleo de Investigadores do Instituto Superior Técnico, Núcleo de Bolseir@s, Investigador@s e Gestor@s de Ciência da NOVA FCSH, Núcleo de Investigadores do ISCTE, Rede de Investigadores Contra a Precariedade, os promotores foram recebidos pelo Ministério de tutela a quem expuseram as preocupações com a precariedade e, tendo-se manifestado em Aveiro em 5 de Julho por altura de um Encontro Ciência, num total de meia centena ou uma centena de aderentes à concentração, receberam do Primeiro – Ministro António Costa a informação de que o Conselho de Ministros aprovaria na generalidade um projecto de decreto-lei sobre a carreira de investigação científica, com vista a negociação com as associações sindicais.

Será que esta revisão de um Estatuto de Carreira já existente, e revisto em 1999(ii), responde à questão levantada pelos manifestantes? Numa primeira resposta dada pelos representantes destas percebe-se que não:

é por demais evidente que a opção política continua a ser não dar uma resposta às justas reivindicações dos trabalhadores científicos, integrando-os nas respetivas carreiras (carreiras essas que, não obstante o processo negocial em curso, já existem e podem ser aplicadas)*. Sublinha-se que grande parte destes trabalhadores verão os seus contratos terminar no próximo ano e a tutela e as suas instituições continuam sem soluções apesar dos contributos científicos, sociais e culturais destes profissionais. Da mesma forma, permanece a visão infantilizadora dos investigadores com vínculo de bolsa, não reconhecendo que o trabalho por estes desempenhado tem de ser feito ao abrigo de um vínculo jurídico-laboral.

 

As revisões de Estatutos de Carreira

Aliás a história das revisões é elucidativa:

  • na revisão de 1999 aproveitou-se para afastar a passagem automática a investigador auxiliar dos assistentes de investigação que se doutorassem – visando abrir o caminho ao Ministério da Educação que pretendia rever o Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) no mesmo sentido, consentindo-se contudo em que tal passagem se operasse através de concurso uninominal(iii);
  • muito embora o Secretário de Estado do Ensino Superior José Reis tenha apresentado em 2001 um projecto de novo ECDU – e omitido a necessidade de revisão do Estatuto de Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico (ECPDESP), que necessitava de um reforço de garantias – iludiu-se quando considerou a reacção que se começou a esboçar como mera “linguagem negocial” e o processo não sobreviveu a uma remodelação da equipa e mais tarde à queda do II Governo de António Guterres;
  • quando em 2009 foram publicados diplomas de revisão do EDDU e do ECPDESP, em processo que se prolongou em 2010 por uma apreciação parlamentar com algum impacto, estes diplomas referiram erroneamente que tinha sido aprovada uma revisão articulada do Estatuto da Carreira de Investigação Científica (ECIC), que aliás nunca chegara a ser proposta às associações sindicais.

 

Promoção de emprego científico

Posteriormente a este momento falhado ocorreram duas grandes iniciativas públicas conducentes a colocar investigadores, designadamente os temporariamente cobertos pelo Compromisso com a Ciência em posições estáveis:

  • a criação pela Secretaria de Estado da Ciência do Governo de Passos Coelho na figura de Investigador FCT;
  • a definição, já sob o primeiro governo de António Costa de um “regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico e tecnológico em todas as áreas de conhecimento” que aprovado pelo Decreto-Lei nº 57/2016, de 29 de Agosto veio a dar lugar à alteração deste pela Lei nº 57/2017, de 19 de Julho.

Entre os dois “57” alguma mobilização se veio a desenvolver, aproveitando o contexto da existência de acordos de incidência parlamentar entre partidos de esquerda as organizações de esquerda que contudo no plano sindical não deram lugar a uma única frente negocial.

As posições abertas nas instituições públicas para a contratação de bolseiros doutorados financiados pela FCT foram preenchidos por procedimentos soit disant concursais de selecção internacional.

De notar que foi incluída no diploma votado pela Assembleia a seguinte previsão:

As instituições podem substituir a obrigação de abertura de procedimentos concursais para a contratação de doutorados, prevista no nº 1, pela abertura de procedimentos concursais de ingresso nas carreiras docentes e de investigação, desde que na mesma área científica em que o bolseiro doutorado exerce funções”.

É lógico que com a abertura de um processo de revisão / negocial que me parece será conveniente inclua disposições transitórias, se proceda à divulgação de estatísticas sobre a aplicação dos “57”(iv) e se tenha em conta que:

  • as universidades parecem estar dispostas a abrir concursos para as carreiras se tiverem garantias de financiamento permanente pelo menos das posições não-docentes;
  • pelo contrário instituições universitárias houve que não contrataram doutorados para os seus estabelecimentos mas para “associações” por si criadas, o que a tutela não tentou / não conseguiu corrigir.

 

Os actores

Até 2017 tanto o SNESup como a FENPROF tiveram algum protagonismo na crítica à precariedade dos investigadores e nas diligências junto da Assembleia da República, muito embora a prática fosse a realização de manifestações separadas, em que o SNESup beneficiou da participação de investigadores não filiados.

O SNESup fora inicialmente muito entusiasta quanto à participação de investigadores integrando-os nas suas Direcções sindicais. Mais tarde apercebeu-se de que os seus Estatutos impediam a inscrição e representação dos investigadores não integrados em instituições de ensino superior mas quando se pensou em alterar a denominação do Sindicato no Congresso de 2002 não houve acordo da Direcção nesse sentido(v). Em 2015 fui impedido de defender proposta de alteração no Congresso que então se realizou.

Em 2009 chegou a ser lançada uma Newsletter SNESup Ciência e Tecnologia cuja responsabilidade foi a partir do segundo número assumida por Rui Borges, mas mais tarde essa Newsletter veio a ser suprimida como veio aliás a sê-lo a própria Newsletter InfoSNESup.

Entretanto outros trabalhavam: o SPGL mantendo a denominação Sindicato de Professores veio alargar o seu âmbito aos investigadores científicos, a ABIC que tivera um relacionamento regular com o SNESup passou a trabalhar essencialmente com a FENPROF, e esta passou a assinar textos institucionais em conjunto com a Federação da Função Pública da CGTP.

Como resultado desta evolução o SNESup foi apanhado de surpresa pela manifestação de 16 de Maio, em Lisboa, que terá congregado mil investigadores, tendo tido de pedir licença para apanhar a carruagem:

O SNESup apoia e adere à manifestação nacional contra a precariedade na ciência que se realizará a 16 de maio, a partir das 14h00, em Lisboa. A concentração tem ponto de encontro em frente à Reitoria da Universidade de Lisboa, para uma manifestação com destino ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

Esta iniciativa organizada por diversas estruturas sindicais e movimentos de investigadores tem como base um manifesto reivindicativo no qual não colaborámos, mas subscrevemos a importância da unidade na ação para atingirmos os objetivos que todas e todos compartilhamos, o fim da precariedade na ciência e no ensino superior.”

Igualmente em relação às iniciativas de 28 de Junho da CGTP e de 5 de Julho em Aveiro, em que já aparece entre os subscritores.

É claro que a comunicação interna passou a falar de “iniciativa conjunta do SNESup e das várias plataformas e sindicatos” e de “iniciativa conjunta do SNESup com várias estruturas e sindicatos” mas não há relatos nem fotos da participação.

A previsível negociação terá ainda outros actores, como Sindicato dos Técnicos do Estado, tradicionalmente interveniente nesta área e talvez outras estruturas da UGT.

No plano não sindical será de ter em conta o Fórum dos Conselhos Científicos dos Laboratórios do Estado.

A articulação com os Laboratórios Associados, na maioria correspondentes a instituições com conexão com estabelecimentos de ensino superior e grande número de bolseiros, é também uma incógnita.

Uma dúvida final: as negociações serão feitas em férias para os sindicatos não serem escrutinados pelos seus representados?

 

Notas

(i) Os textos da FENPROF, que segui para escrever este breve apontamento, insistem em falar de “investigadores científicos”, não sei se para distinguir estes colegas dos investigadores criminais.

(ii) Decreto-Lei nº 124/99, de 20 de Abril, datando da primeira passagem de José Mariano Gago pelo Governo, então como Ministro da Ciência e Tecnologia.

(iii) Técnica talvez inspirada no processo seguido a nível da Administração Pública no primeiro Governo de António Guterres para integrar “por concurso” os recibos verdes deixados pelo ciclo de Cavaco Silva.

(iv) Terá havido também algumas integrações de investigadores em carreira por força do chamado PREVPAP.

(v) Luis Moniz Pereira fez passar uma alteração estatutária consensual mas não houve quórum na Assembleia Geral do SNESup de 2003 para ratificar as deliberações do Congresso de 2002.

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