A trajetória do cinema no Brasil semelha-se à do futebol: começa pela elite, desloca-se para as classes intermediárias, cristaliza-se nelas um tempo, vai-se popularizando e se aproxima cada vez mais das classes trabalhadoras.
Trazido ao país no início do século passado pelos abastados proprietários de indústrias, o futebol era praticado pela alta burguesia em clubes fechados. De vez em quando, para completar o time, tiravam um operário da fábrica. Há já uma razoável bibliografia no Brasil sobre esses primórdios do esporte que mata o brasileiro do coração, e vale a pena consultar, pois é uma fonte para se compreender os modos pelos quais os trabalhadores vão, pouco a pouco, conquistando espaços antes reservados apenas aos endinheirados.
Acontece que não se demorou a perceber que os operários jogavam melhor do que os patrões, e estes, sempre espertos, foram cedendo lugar no campo para que seus operários goleassem os times adversários: mandar, do lado de fora das quatro linhas, para eles, ficou sendo o esporte que sobrou.
O fato é que perderam o lugar no time e nunca mais o reconquistaram.
Mas um problema apareceu desde o início para o trabalhador futebolista: o futebol não era remunerado e isso limitava em tempo e dedicação a prática mais regular. As histórias desse período de informalidade são também conhecidas, quase sempre dramáticas, e algumas também já viraram livros. Como a profissão demorou a ser regulamentada, depois de uma certa idade, dedicar-se ao futebol ficou sendo sinônimo de irresponsabilidade e vagabundagem.
As coisas só foram ficando um pouco melhores quando se partiu para a profissionalização. Ou seja, quando, de uma vez por todas, a prática deixou de ser lazer de horas vagas da elite para tornar-se atividade de trabalhador, remunerada.
Naturalmente os cartolas, eternos patrões, lutam até hoje para que essa profissão mantenha-se diferenciada das outras categorias de trabalhadores, pois assim fica mais fácil manter sob chicote curto esses um tanto atletas, um tanto artistas da bola.
Ainda não se inventou uma fórmula adequada para que essa categoria profissional se consolide de modo mais autônomo (os cartolas são verdadeiros senhores de escravos modernos, compram e vendem gente e quando a lei se moderniza, por uma brecha eles encontram meios de, sob outra forma, manter a lógica desse comércio humano), mas a verdade é que jogadores, técnicos, preparadores físicos e demais profissionais da área são trabalhadores, alguns privilegiados, com salários de mega-sena, mas a maioria humilde, matando dois leões por dia para sobreviver.
A analogia com o cinema se justifica quando se vê que a tecnologia diminuiu vertiginosamente a distância entre os equipamentos e os trabalhadores. Não tão antigamente, câmeras fotográficas e filmadoras eram coisas a que mesmo a classe média não tinha acesso fácil.
Hoje, câmeras há as mais variadas. Antes mesmo dos celulares, não era difícil encontrar em uma família de trabalhadores uma delas.
O acesso coletivo às tecnologias audiovisuais vai-se democratizando acentuadamente, e isso vai pondo nas mãos dos trabalhadores um fazer que antes lhes escapava. Tal como o futebol, é comum em periferias de grandes cidades encontrarmos grupos se organizando, filmando, produzindo e exibindo suas próprias criações, que se disseminam exponencialmente nas redes sociais.
Festivais e mostras de curtas e longas-metragens, de documentários ou produções domésticas, de produções de jovens ou experimentais vão empurrando a elite para o banco de reservas e dele para a arquibancada.
É lógico que a elite resiste e se agarra a leis e políticas ultrapassadas para manter seus privilégios, mas é como se tentasse represar água com peneira.
Necessitamos voltar-nos para aspectos legais e políticos que impedem uma maior e mais rápida democratização do setor audiovisual, pois um jovem com uma câmera na mão e consciente do poder transformador do audiovisual se torna protagonista do processo social.
Assim como o futebol, o cinema e as artes audiovisuais ficam mais próximos do trabalhador quando significam emprego. Se arte e trabalho não andam juntos, o trabalhador é que fica na arquibancada, a assistir ao que a elite e a classe média dizem de si e do mundo.
Já sabemos em que resultou o feliz casamento entre o futebol e as classes trabalhadoras no Brasil. Agora vamos descobrindo os frutos do casamento entre elas e as tecnologias audiovisuais.
Porém, essa facilitação do acesso não se converterá em democracia verdadeira se, como no caso do futebol, as classes dominantes não forem confrontadas em sua cartolagem audiovisual, que torna as redes sociais uma espécie de cloaca magna, para onde escorre todo tipo de preconceito, vulgaridade e falsos valores.
por Jeosafá Fernandez Gonçalves, Escritor e cineclubista, é doutor em Letras e pesquisador colaborador do Departamento de História da USP | Texto original em português do Brasil, com tradução de Mariana Serafini
Exclusivo Editorial PV / Tornado
Receba a nossa newsletter
Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.