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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

A China e a renovação do Capitalismo

Arnaldo Xarim
Arnaldo Xarim
Economista

O prenúncio de uma guerra comercial sino-americana é algo que devendo ser encarado com as devidas cautelas (no mínimo as mesmas que merece qualquer conflito, onde como se sabe nenhuma das partes está isenta de responsabilidades nem é admissível qualquer dicotomia do tipo “bons contra os maus”), justifica no caso concreto uma apreciação ainda mais prudente.

Poderão tratar-se de dois regimes políticos distintos – com o norte-americano a vangloriar-se do seu perfil democrático, contra o modelo centralizado chinês – mas em caso algum se tratará dum conflito entre dois sistemas económicos radicalmente diferentes. Desiluda-se quem ainda não vê na China pós-Deng Xiaoping uma economia capitalista avançada e perfeitamente integrada no mercado mundial, como sugerem as análises apresentadas em “Towards Capitalist Restoration? Chinese Socialism after Mao”, de Michel Chossudovsky, publicado pela Macmillan em 1986 e de “China and Socialism: Market Reforms and Class Struggle”, de Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett publicado na edição de Julho-Agosto de 2004 da Monthly Review.

Desde os finais da década de 1970 o “ressurgimento das características capitalistas” associado ao rápido crescimento económico tende a contornar a questão mais ampla da restauração capitalista no processo histórico em curso. A construção da espinha dorsal duma economia de exportação baseada na mão-de-obra barata começou em 1978 quando Deng Xiaoping lançou a política de “Porta Aberta” e as Zonas Económicas Especiais da China (ZEE) em Shenzhen e Xiamen, replicando em grande medida o modelo dos portos estabelecidos no início das guerras do Ópio (1842) e influenciado pelo histórico tratado, que concedeu direitos extraterritoriais às grandes potências coloniais da época (Grã-Bretanha, França, Alemanha, EUA, Rússia e Japão).

O principal motor do crescimento do PIB na era pós-Mao foi (desde o princípio) a mão-de-obra barata; a economia de exportação da China baseia-se em salários absurdamente baixos e altos níveis de desemprego, contribuindo para o desenvolvimento acelerado do consumo de luxo no mercado interno enquanto empobrece a generalidade do povo chinês (particularmente nas áreas rurais) pois uma grande parte dos lucros desse processo de crescimento capitalista tem sido transferida, via comércio internacional, para os países ocidentais.

Segundo um estudo da Universidade de Michigan, a desigualdade social na China está entre as mais altas do mundo, tem aumentado rapidamente e em 2014 os níveis de desigualdade de rendimento eram maiores do que nos EUA.

A questão do grande crescimento do PIB da China pós-Mao é enganadora. A taxa de crescimento durante o período maoísta foi igualmente significativa, mas tinha um objectivo e uma “composição social” diferentes. Embora a China desempenhe um importante e positivo papel de equilíbrio no tabuleiro de xadrez geopolítico, ela não constitui uma alternativa, do tipo socialista, viável ao capitalismo ocidental.

O que uma observação mais atenta da realidade chinesa demonstra é que depois desta ter iniciado uma via de desenvolvimento capitalista, foram resurgindo todas as características prejudiciais e destrutivas desse sistema (processo talvez agravado pela urgência num crescimento muito rápido) e no lugar um novo mundo de “socialismo de mercado” o que surgiu foram desigualdades grosseiras, a destruição humana e ecológica e a gritante realidade da velocidade com que desapareceram as conquistas igualitárias, desmentindo o mito de que o socialismo chinês sobrevive entre as práticas capitalistas mais desenfreadas

A China é, actualmente, uma economia integrada no mercado mundial, que por via dos baixos salários (o salário dos trabalhadores não qualificados nas fábricas chinesas é de apenas 100 dólares por mês, uma pequena fracção do salário mínimo nos países ocidentais) concentrou grande parte do processo de deslocalização industrial das economias ocidentais e transformou-se num grande exportador e no principal fornecedor de mercadorias para os EUA.

Natural é que tendo os EUA importado mais de 430 mil milhões de dólares (19% do total das exportações chinesas em 2017) tentem agora reduzir o seu défice comercial com a China; mas o pior é que este desequilíbrio não se regista apenas com aquele país asiático, antes com todos os seus principais parceiros comerciais, como ilustra o gráfico seguinte:

…o que tenderá a reforçar o âmbito e a dimensão de medidas (aumento das taxas aduaneiras) que parecem ignorar que é o défice comercial com a China que contribui para sustentar a economia de retalho dos EUA e o crescimento do PIB americano.

Sanções comerciais dirigidas contra a China, e outros grandes exportadores para os EUA, rapidamente se repercutirão contra a economia norte-americana. Ao contrário da China, que não depende das importações americanas (48,5% das exportações chinesas têm como destino outros países asiáticos e apenas 22% foram vendidas a importadores norte-americanos), os EUA são uma economia com uma fraca base industrial e manufatureira e fortemente dependente das importações, que poderá sofrer efeitos devastadores caso aquela reaja à guerra comercial reduzindo significativamente as suas exportações. É que estas, além de serem a espinha dorsal do comércio retalhista nos EUA (são elas que sustentam o consumo doméstico em praticamente todas as principais categorias de produtos básicos de vestuário, calçado, equipamento, eletrónica, brinquedos, jóias, utensílios domésticos, alimentos, televisores, computadores, telemóveis, etc.), são uma operação lucrativa de vários biliões de dólares e a fonte de enorme lucro e riqueza nos EUA, porque os bens de consumo importados da economia chinesa de baixos salários são normalmente vendidos no retalho a mais de dez vezes o preço de fábrica.

O processo de globalização económica, liderado por economias como a americana e despoletado no último quartel do século passado, que acelerou a tendência de deslocalização da produção para as economias periféricas sustentadas em políticas de baixos salários, conduziu à recuperação do modelo de produção capitalista na China a par com a substituição, nos países ocidentais, da economia industrial por uma economia de consumo que ameaça agora revelar toda a sua fragilidade. As políticas proteccionistas defendidas pela actual administração norte-americana dificilmente farão regressar a produção àquele território (salvo se os trabalhadores americanos aceitarem os salários iguais aos asiáticos) mas quase garantidamente deteriorarão as condições de vida da maioria da sua população, para não falar nos grandes lucros das empresas detentoras das marcas fabricadas nas economias asiáticas, enquanto – sinal dos novos tempos, bem evidenciados quando se noticia a reactivação da antiga Rota da Seda, o lançamento duma Nova Rota da Seda ou a intenção chinesa de criar uma nova locomotiva económica – vêem a China emergir como o grande defensor do comércio livre e caminhar a passos de gigante para a recuperação do Império do Meio.

 

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