A cimeira Xi-Biden do dia 15 de Novembro terá sido o primeiro passo para um desanuviamento Leste-Oeste? Para uma discussão sobre o tema proponho que passemos em primeiro lugar em revista os termos do debate, em segundo lugar o seu contexto, para no final partilhar convosco algumas conclusões.
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Revista dos termos do debate
Tomo aqui o Ocidente não no sentido geográfico ou histórico, mas como significando as democracias desenvolvidas; Taiwan, a Coreia do Sul, ou o Japão são assim cada vez mais o centro do ‘Ocidente’, mesmo se bem colocadas no Extremo-Oriente. Tomo aqui igualmente os EUA como o líder desse ‘Ocidente’, algo que não prevejo que se altere nas próximas décadas e, em qualquer caso, quando se alterar, não será certamente em favor da Europa.
E desde que se convencionou utilizar este termo de ‘Ocidente’, usado de forma indistinta do de ‘primeiro mundo’, que este Ocidente supôs um Oriente (com um indistinto Sul à margem) que pendeu da Rússia para a China.
E esse Ocidente, que se perfilou de forma nítida apenas após o discurso de Churchill sobre a ‘cortina de ferro’, cortina essa que se transformou depois em ‘cortina de bambu’, manteve com o seu parceiro oriental o que se convencionou chamar de ‘guerra fria’ – que antecipou muito do vocabulário climatérico contemporâneo, porque só foi fria no centro, mas manteve-se quente nas periferias – e oscilou nessa época entre ‘contenção’ e ‘desanuviamento’.
A ‘contenção’ é um conceito contemporâneo do da ‘cortina de ferro’ (na verdade, é-lhe anterior de alguns dias, mas se o telegrama diplomático secreto norte-americano chegou às mãos de Churchill nesse período de tempo, este inovou na sua aproximação) e é atribuído ao diplomata americano George Kennan.
A ‘contenção’ descreve a mesma realidade que a ‘cortina de ferro’, mas tomando o ponto de vista inverso; enquanto Churchill vê uma cortina de ferro a enclausurar uma parte da Europa, Kennan vê a necessidade de conter a União Soviética nesse espaço que dá implicitamente como perdido, a fim de não a deixar tomar conta do resto.
O ‘desanuviamento’ data originalmente de 1912, expressão da aposta na paz com a Alemanha, aposta que, como sabemos, não foi bem-sucedida, sendo que a expressão foi retomada no pós segunda-guerra para designar o ‘desanuviamento’ no conflito Leste-Oeste iniciado em 1969.
Com a desintegração da União Soviética, tivemos então o ‘fim da história’ previsão que a meu ver é erradamente atribuída a Francis Fukuyama (abordei o assunto aqui no Tornado) e o que Hubert Védrine haveria de denominar de ‘hiperpotência’ numa pobre e efémera contribuição para o dicionário estratégico, mas que não parece ter sido mais do que um interlúdio para o retomar do vocabulário do pós segunda-guerra.
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Do tempo e do modo
Tão importante como o modo como estes conceitos se interpretam é o tempo em que se aplicam. O ‘apaziguamento’, por exemplo, que foi a repetição nos anos 1930 da mesma estratégia implícita no ‘desanuviamento’, deixou marcas de tal forma profundas do seu insucesso que ganhou um sentido estratégico pejorativo, incapaz de recuperação, sendo substituído por isso pelo ‘desanuviamento’, cujo falhanço, mais antigo, foi esquecido e de que a sua reedição em 1969 se pode tomar por um sucesso mitigado.
É consensual que a estratégia ocidental de apaziguamento dos anos 1930 foi desastrosa, e é quase consensual que a estratégia original de desanuviamento de 1912 foi um insucesso, e que tanto uma como a outra propiciaram a guerra ao fazer passar a mensagem que os interlocutores da Alemanha estavam dispostos a tudo ceder em todas as circunstâncias.
No extremo oposto do espectro estratégico é também hoje consensual que o desencadear da guerra com o Iraque, que foi defendida como uma estratégia de prevenção contra armas de destruição maciça – foi igualmente desastrosa, se bem que não haja consenso sobre as razões pelas quais isso assim foi. É conveniente registar que o ex-presidente Donald Trump foi o primeiro presidente norte-americano a classificá-la dessa forma, sendo que o seu sucessor, que a apoiou na altura, nunca a condenou nos mesmos termos.
Donald Trump foi quase universalmente visto como o actor de uma mudança estratégica na política de alianças, mas que foi mais uma questão de modo do que de substância. A forma pouco diplomática com que Trump exigiu aos seus aliados – quer a Alemanha a Oeste, quer a Coreia do Sul a Leste – que avançassem com um maior esforço do orçamento de defesa e que não se limitassem a usufruir do escudo de protecção americano para prosperar nos negócios, frequentemente com os adversários protegidos pela defesa norte-americana, limitou-se a colocar no altifalante o que era dito antes mais diplomaticamente pelas autoridades norte-americanas.
Nos cenários de guerra do Médio Oriente e da Ásia do Sul, Trump prosseguiu a retirada do conflito seguida pelo seu predecessor, embora numa lógica estratégica diferente, consonante com o típico isolacionismo republicano, e não com a reconfiguração de um mundo islâmico dominado pelo fanatismo.
O único caso em que a doutrina de Trump foi mais interventiva foi o do Irão, onde rompeu com a cedência ao Irão nuclear implícito no acordo de 2015 e impôs uma política de contenção baseada em sanções económicas e de resposta ao terrorismo, nomeadamente respondendo a um ataque da Brigada Jerusalém dos guardas revolucionários islâmicos com um contra-ataque que eliminou o seu comandante.
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Biden, Xi e o desanuviamento
A administração Biden partiu do princípio de que o seu antecessor era um maníaco belicista e, portanto, era necessário inverter quase tudo o que ele tinha feito, a principal excepção sendo a da política de rendição aos Taliban, por sinal a mais desastrosa das iniciativas de Donald Trump.
A entrega do Afeganistão aos Taliban excedeu tudo o que era imaginável, dando mesmo a impressão de que a administração americana se tinha convertido em culto suicidário ou que, pelo menos, os inimigos dos EUA se infiltraram profundamente nas estruturas do poder norte-americano.
O general Milley – chefe do Estado Maior das Forças Armadas nomeado ainda durante a administração Trump – entregou-se a uma surrealista conspiração com o exército chinês sobre supostos planos americanos de iniciar uma guerra nuclear com a China. Esse episódio só veio a público depois de os EUA terem entregue o Afeganistão aos Taliban, entregando-lhes pelo caminho milhares de cidadãos e colaboradores, pessoas que só vieram a ser libertadas mediante negociações entre as duas partes cujos termos não são do domínio público.
O segundo caso em que Biden seguiu os erros anteriores foi o da retirada da Parceria Trans-pacífica, uma iniciativa que tinha como objectivo a contenção económica da China e que tinha sido largamente inspirada pelos EUA. Não se trata de saber se os termos da parceria eram os ideais, trata-se antes de assegurar que a potência que quer ter credibilidade no mundo não pode actuar dessa forma.
Depois tivemos a resposta americana às rotas da seda da China – tema a que dediquei aqui no Tornado uma crónica sobre as suas disfuncionalidades – em que a Administração Biden reciclou para uso propagandístico internacional o slogan (3BW) que tomou às Nações Unidas e já tinha usado quer na campanha eleitoral quer no plano interno de investimentos recentemente aprovado pelo Congresso. A última vez que o vi referido, foi pela ‘Voz da América’ num artigo em que um responsável da Casa Branca confessava que a iniciativa ‘tinha ainda caminho a percorrer’, forma eufemística de admitir que ainda não tinha saído do quadro da propaganda.
Depois tivemos o AUKUS, a crer na máquina da comunicação institucional, uma temível iniciativa estratégica para conter a China, mas que não fez mais do que sabotar o natural crescimento do ‘QUAD’ que tinha exactamente esse objectivo e com a qual tanto a França como o Reino Unido colaboravam de forma cada vez mais próxima.
Com extraordinária incompetência, a Administração Biden conseguiu ainda com o AUKUS torpedear as suas relações tanto com a França como com a Índia. No caso da Índia, foi apenas mais uma acha para a fogueira bem acesa com o abandono do Afeganistão aos taliban em tais condições que os diplomatas indianos tiveram de ser evacuados de Cabul pela Rússia. Aparentemente as luminárias que iluminam a Casa Branca ficaram surpreendidos por a Índia querer acelerar a chegada à Índia de mísseis S-400 russos.
Entre os temas secundarizados na cimeira esteve a repressão em Hong Kong, no Tibete e no Turquestão Oriental – neste último caso, atingindo mesmo carácter de genocídio – bem como as responsabilidades sino-americanas no desastre afegão ou no desencadear da pandemia.
A China exultou com a retirada americana do Afeganistão tendo proclamado no dia seguinte à queda de Cabul que essa retirada queria dizer que Taiwan se tinha tornado indefensável. A retirada americana de um país fronteiriço da China seria sempre uma retirada perante a China (embora a imprensa institucional ocidental tenha feito eco da pretensão surrealista de que essa retirada era para concentrar as atenções na China), mas como Xi bem entendeu, esta retirada foi mais que um recuo perante a China, ela enviou também a mensagem de que os EUA não são um aliado de confiança.
Taiwan é central nas ambições imperiais chinesas, mas é também central de outro ponto de vista, certamente menos entendido, que é o de ser um centro contemporâneo dos valores ocidentais.
E por essas razões exigia-se clareza a Biden sobre Taiwan, e aquilo que concluí do que li sobre a matéria é que foi esse o ponto da cimeira onde mais faltou a Biden determinação e frontalidade.
Posto isto, no jogo estratégico, as asneiras e fraquezas do adversário são tão ou mais importantes do que as domésticas. O modelo de crescimento chinês baseado em investimento massivo parece ter finalmente entrado em crise, e isto tanto interna como externamente.
O futuro dirá se essa crise irá colocar problemas maiores à China do que o momento inflacionista coloca aos EUA, mas o meu prognóstico é que é isso o que vai acontecer.
Depois, temos o factor político, e aqui, mantenho o ponto de vista atribuído a Churchill de que a democracia liberal é o pior dos sistemas políticos, excepção feita a todos os outros. As asneiras políticas da Administração Biden levaram apenas meses antes de se fazerem sentir nas urnas; Xi, pelo contrário, foi entronizado pelo pleno do comité central deste ano para continuar o seu mandato sine die, sem que alguém se atrevesse a apontar-lhe quaisquer erros. Enquanto a administração Biden foi obrigada a parar o mandato obrigatório para o seu plano anticovid, a administração chinesa prossegue a sua política de ‘zero vírus’ com um impacto negativo enorme na sociedade e economia chinesas e provavelmente com uma consequência positiva: a doutrina é incompatível com o lançamento a curto prazo de uma invasão de Taiwan.
Em poucas palavras, as asneiras de Biden foram maiores que as de Xi, mas enquanto a democracia oferece um remédio para as primeiras a autocracia não permite remediar as segundas.
Há em qualquer caso um ponto fundamental marcado por Biden neste duelo. A constatação de que a China está a desenvolver de forma exponencial o seu arsenal e capacidade tecnológica nucleares levou Biden a pedir e obter conversações nucleares bilaterais.
Por estas razões creio que o desanuviamento de Biden em 2021 tem tantas condições para ser bem-sucedido como o de Nixon em 1969 – apesar de Nixon e apesar de Biden – e vejo como menos provável a repetição dos resultados obtidos com o desanuviamento de 1912 ou com o apaziguamento dos anos 1930.