O golpe militar de 1962 pôs fim ao governo civil e independente na Birmânia, hoje Myanmar de acordo com a transliteração mais próxima da realidade, em nome do “socialismo” e de um feroz antiamericanismo que inaugurou uma das mais sangrentas ditaduras asiáticas.
1. A pesada herança dos militares
Os militares transformaram o que seria talvez o mais próspero dos países do sudeste asiático no que é o menos desenvolvido da região, reprimindo ferozmente toda a oposição, agravando substancialmente os conflitos étnicos e enriquecendo-se à custa da exploração desenfreada dos trabalhadores e da ruína geral.
A pressão internacional levou ao início de um regime de transição pelo qual eles cederam o essencial do poder, excepto o da defesa e segurança e, claro, a vasta riqueza que acumularam com a ditadura.
A transição está em pleno desenvolvimento desde 2016, data em que Aung San Suu Kyi assumiu as funções de ‘Conselheira de Estado’, posição aparentada a ‘Primeiro-Ministro’. Filha do líder histórico do país, assassinado a 19 de Julho de 1947, meses antes da independência, Suu Kyi trabalhou vários anos nas Nações Unidas, foi presa durante mais de uma década em 1989 antes de ganhar as eleições de 1990 (anuladas pelos militares) e foi-lhe finalmente dado acesso ao poder em 2016.
Os progressos têm sido fulminantes na área da democratização do dia-a-dia, do crescimento económico, liberdade e melhoria das condições de vida dos trabalhadores, mas não se têm verificado, ou tem-se mesmo assistido a notáveis recuos, na frente dos inúmeros conflitos étnicos que envolvem a maioria ‘Burman’ e vários das dezenas de grupos eteno-religiosos do país.
Curiosamente, ao mesmo tempo que Myanmar iniciava o seu lento percurso de democratização, a sua vizinha Tailândia iniciava o percurso contrário com um golpe militar que pôs fim à democracia, aqui curiosamente, não em nome do ‘socialismo’ mas em nome da inviolabilidade e santidade da monarquia.
Embora bastante menos brutal do que a ditadura militar birmanesa, a ditadura militar tailandesa prossegue a mesma lógica de desrespeito pela vontade democrática, pela liberdade dos cidadãos e pelos direitos dos trabalhadores, mostrando como a Venezuela e outros regimes autoritários animados por lógicas fascistas são semelhantes no desrespeito pela humanidade quer se proclamem do socialismo, da tradição ou da nação.
2. Entender a conflitualidade eteno-religiosa
A humanidade tem dezenas de milhares de anos de história marcados por conflitos, que assumiram frequentemente a forma do genocídio, entre grupos humanos diferenciados por factores étnicos, religiosos, tribais, territoriais, familiares ou sociais (mais frequentemente, uma mistura destes factores), e conta também com uma história menos vasta mas não menos importante de complexas construções sociais ‘babilónicas’ ou globalistas que conseguiram a convivência, as tréguas ou mesmo a fusão pacífica de realidades humanas diversas, por vezes, nos escombros de trágicos conflitos.
O melhor dos mundos é naturalmente aquele onde as identidades de cada indivíduo ou grupo assumido em qualquer dimensão se possa afirmar em pleno respeito pela identidade do seu semelhante, exercício que tem sido muito difícil de atingir e do qual a humanidade se tem afastado quando prossegue conceitos metafísicos falhos de substância para ocultar a realidade.
Olhando para a história da descolonização britânica do seu império das ‘Índias Orientais’, creio que se tornam evidentes os prejuízos da lógica do pseudo-respeito da identidade territorial e religiosa com que ela foi prosseguida.
Lembremos que antes da concessão da independência, o Reino Unido separou o Myanmar (Birmânia) e o Sri Lanka (Ceilão) do vice-reino da Índia e que, talvez não por acaso, os mais sangrentos e prolongados conflitos étnicos no ex-império se têm dado no interior desses dois países.
Lembremo-nos também que o Reino Unido, numa área onde as diferenças eteno-religiosas são um puzzle a centenas de dimensões, resolveu apadrinhar o conceito de que o restante da Índia devia ser separado entre ‘Islão’ e ‘outras religiões’ provocando uma partilha do continente que custou a vida a milhões de pessoas no imediato, levou a genocídios como o do Bangladesh e do Baloquistão e pode eventualmente vir ainda a provocar um holocausto nuclear iniciado entre as duas principais entidades políticas que daí resultaram.
Não estou com isto a embarcar no discurso demagógico de culpar o antigo colonizador por todos os males, bastando para isso constatar que a Índia (onde haverá para cima de mil grupos eteno-religiosos identificáveis) enfrenta no dia-a-dia graves conflitos, mesmo se o sistema democrático indiano tem conseguido gerir a situação evitando tragédias comparáveis às dos seus vizinhos.
Estou apenas a dizer que olhar para a árvore em vez da floresta tem sido um erro crasso do Ocidente, atitude que em vez de resolver os problemas os tem multiplicado, e que apesar das trágicas consequências da sua acção, continua a persistir nos mesmos erros.
3. O essencial a reter da tragédia Rakhine
Depois de ter visitado há alguns meses as duas principais zonas de conflito eteno-religioso no Bangladesh: a região das ‘colinas de Chitagong’ onde várias etnias ‘Chakma’ (budistas e tibetanas) sofreram uma limpeza étnica ao longo das décadas de colonização paquistanesa e sob o regime Islamo-nacionalista dos generais do Bangladesh; e a região de fronteira entre o Estado birmanês de Rakhine e o distrito de Cox Bazar onde se estima estarem alojados mais de um milhão de refugiados Rohingya maioritariamente muçulmanos mas também hindus. Note-se que o maior afluxo data de 2017, mas como eu pude constatar grande parte desses refugiados vêm de tempos mais recuados.
A lógica eteno-nacionalista birmanesa precedeu o regime militar, levando à eclosão de numerosos conflitos étnicos anteriores à ditadura. São conflitos que se prolongam nos nossos dias, continuando a existir numerosas guerrilhas e milhões de deslocados e refugiados com crises humanitárias graves na generalidade das fronteiras do país.
Os Rohingyas têm sido especialmente mal tratados pelo poder militar que criou no século passado uma lei da nacionalidade em que estes podiam ser remetidos ao estatuto de cidadãos de segunda, terceira e mesmo quarta categoria, sendo-lhes negados em graus diversos direitos básicos como a educação, a saúde e mesmo a constituição da família.
Constatando que os Rohingyas têm crescimentos demográficos muito superiores aos dos outros grupos, o poder militar resolveu punir draconianamente as grandes famílias Rohingyas com medidas de crescente desumanidade.
Os Rohingyas – cuja língua é semelhante à das áreas de Chitagong no Bangladesh, que fisicamente se parecem com a generalidade dos indianos e são muitos diferentes dos tipos tibetano e indo-chinês prevalecentes no resto do país – tornaram-se alvo de discriminação brutal. Privados de educação, tornaram-se numa espécie de párias fáceis de diabolizar e ao mesmo tempo de manipular pelo Jihadismo, dado que a esmagadora maioria é muçulmana.
As Nações Unidas e a imprensa ocidental oficiosa consideraram que se está perante ‘islamofobia’ responsável pela maior catástrofe humanitária da região, culpando por isso Suu Kyi por não ter rompido com os militares responsáveis pelos massacres.
Em poucas palavras, o Ocidente ignorou a realidade e tomou uma posição pseudo-humanitária cuja única consequência será a de agravar o conflito.
Por um lado, sabota o processo de democratização birmanês, exigindo a Suu Kyi que rompa com os militares (e obviamente, com isso acabe com a transição democrática e volte à ditadura), fazendo dela o principal alvo em vez dos militares.
Por outro lado, dá ao Jihadismo o papel de ‘libertador das minorias oprimidas’, o que mais do que uma grosseira falsificação histórica, é um convite a mergulhar toda a região em conflitos e massacres em vez de resolver os conflitos existentes.
Com esta deslocação a Myanmar creio que consigo ver pistas para uma aproximação alternativa que possa conduzir a situações de mais humanidade e mais respeito pelo próximo que desenvolverei em próximas oportunidades.