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Quarta-feira, Julho 17, 2024

A dança das cadeiras em Ancara

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Neste naufrágio programado, os cidadãos europeus dão-se conta de como vão as coisas e entendem que o ataque à senhora Presidente da Comissão Europeia é um ataque ao indeclinável respeito que todos devemos a todas as mulheres deste mundo.

  1. A grosseria ‘inclusiva’

Ninguém precisa de um curso de diplomacia para saber distinguir o jogo das cadeiras, que eventualmente se joga na nossa juventude, com o dever de dar lugar a uma senhora acaso não haja lugar para todos. A deferência pela mulher na sociedade é algo que é dado como um adquirido civilizacional que nos habituámos a respeitar.

Na Cimeira Turquia – União Europeia que teve lugar a semana passada em Ancara em que, como tem sido tradicional, participaram, pelo lado europeu, o Presidente do Conselho Europeu e a Presidente da Comissão Europeia – os cidadãos europeus puderam ver os seus dois representantes comportar-se como se estivessem a fazer a dança das cadeiras esquecendo estas regras elementares do nosso protocolo civilizacional, deixando entre os três presentes a senhora de pé à procura de um lugar que eventualmente encontrou num sofá afastado.

O filme dos acontecimentos profundamente ofensivos dos nossos valores circulou amplamente e, coisa que nunca me lembro de ter visto no cenário europeu, levou a que ambos os departamentos europeus (os do Conselho e os da Comissão) viessem a público esgrimir argumentos sobre o sucedido.

As declarações dos responsáveis por esses serviços – que aparentemente foram apenas dirigidas à imprensa e não estão disponíveis publicamente na íntegra – começam por revelar que estes não percebem que os cidadãos europeus pouco se interessam pelas guerras das capelas burocráticas mas consideram antes fundamental respeitar o protocolo civilizacional europeu.

O prontuário ‘inclusivo’ (politicamente correcto), que aparentemente já conquistou a burocracia protocolar, é intelectualmente indigente e não sabe fazer a distinção entre dar oportunidades iguais a quem é diferente e igualizar o ser humano numa amorfa amálgama, passo primeiro de todo o totalitarismo.

O que este episódio revela também é que as regras da ‘inclusividade’ são facilmente manipuláveis, nomeadamente para obter o inverso do que supostamente apregoam, neste caso transformando a ‘igualdade’ em instrumento de satisfação da misoginia islamista.

 

  1. O debate do sexo dos anjos

De acordo com um dos relatos do incidente, os serviços da Comissão, através do seu porta-voz Eric Mamer, afirmam que a presidente da Comissão Europeia ‘deveria ter sido sentada exatamente da mesma maneira que o presidente do Conselho Europeu e o presidente turco’ dado que ambos os representantes europeus são ‘presidentes de instituições europeias e portanto devem ser tratados ao mesmo nível protocolar.’

Dominique Marro, chefe dos serviços de protocolo do Conselho, terá pelo seu lado contra-argumentado:

‘Se a sala para o tête-à-tête tivesse sido visitada, teríamos sugerido aos nossos anfitriões que, por cortesia, substituíssem o sofá por duas poltronas para o presidente da Comissão”, diz Marro, acrescentando que a sala de jantar tinha três cadeiras preparadas para os líderes.’

Temos aqui um erro de concordância, menos desculpável numa mensagem escrita e por um responsável pelo protocolo, porque a Presidente da Comissão Europeia manifestamente não precisava de duas, mas apenas de uma cadeira (Marro pretenderia provavelmente referir-se ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia como destinatário da segunda cadeira), uma adicional falta de decoro na infeliz referência à cadeira disponibilizada à senhora Presidente na mesa para o jantar (ela deve agradecer não ser colocada numa mesa à parte, ou não ser obrigada a assistir ao jantar de pé?) e acima de tudo a enviesada assunção da responsabilidade sem qualquer laivo de cavalheirismo no pontapé no decoro devido à senhora Presidente.

Que a burocracia europeia tenha resolvido levar esta discussão do protocolo – rigorosamente equivalente à do sexo dos anjos para Ancara (Bizâncio, não longe, teria sido naturalmente mais apropriado) – diz tudo sobre o grau de incompetência e de insanidade a que chegámos.

Trata-se do corolário do debate institucional em que a Europa está mergulhada há décadas. Como se explicava na altura na anedota mil vezes repetida, Kissinger teria dito, ‘mas para quem devo telefonar se quiser falar com a Europa?’ pretendendo-se com isto dizer que era necessário reformar os tratados para clarificar competências.

E aquilo que constatamos é que trinta anos e inúmeros tratados depois, o problema deixou de ser só de telefones e passou também a ser de cadeiras.

Finalmente está à vista de todos o que foi a ‘reforma institucional europeia’: uma absurda disputa de posições de uma administração que arrogantemente ignora o que é importante para a Europa e para os europeus e que pelo caminho ensarilha fortemente o seu funcionamento.

 

  1. A capitulação europeia

O desastre diplomático de Ancara foi precedido pelo não menos grave desastre diplomático de Moscovo, protagonizado por um terceiro pretendente a ser o porta-voz da Europa, Josep Borrell.

De comum entre os dois desastres a incapacidade política do funcionalismo de entender a diferença entre aliados e adversários e de saber o que é estratégia e assim ser facilmente manipulável pelos interesses antieuropeus.

Josep Borrell (União Europeia)

A Presidente da Comissão Europeia centrou as suas intervenções na visita à Turquia na crítica à decisão de Erdogan de retirar a Turquia da Convenção de Istambul dedicada ao combate à violência contra as mulheres, mais um passo na lógica misógina islamista.

Infelizmente o poder institucional europeu não foi capaz de compreender a importância e o alcance do que ela tentou fazer e deixou-se manipular pelo islamismo para insultar a senhora Presidente e dar cobertura a este ataque aos valores humanos.

Por trás da incompetência, das ridículas rivalidades ou do insano prontuário inclusivo está a capitulação perante quem está apostado em colocar esses valores em causa.

Neste naufrágio programado, os cidadãos europeus dão-se conta de como vão as coisas e entendem que o ataque à senhora Presidente da Comissão Europeia é um ataque ao indeclinável respeito que todos devemos a todas as mulheres deste mundo.

Terão agora que pensar das razões pelas quais chegámos a este ponto.

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