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João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

A dança do poder

No balé Clytemnestra, da coreógrafa americana Martha Graham, há uma passagem que me marcou profundamente, retornando sempre às minhas reflexões sobre o poder.

Vocês lembram a tragédia grega. Agamêmnon, irmão de Menelau e cunhado de Helena, assume o comando dos gregos, na guerra contra Troia. Ao chegarem à baia de Áulis, de onde partirão os navios, o rei comandante se ocupa a maior parte do tempo em caçadas.

No seu afã, ele abate uma cerva magnífica, consagrada à deusa virgem Ártemis. Enfurecida com o desrespeitoso mortal, a deusa manda baixar uma calmaria sobre o oceano e os gregos não têm como partir, por falta de ventos que inflem as velas das embarcações.

Consultam o oráculo e a sentença não poderia ser mais cruel: os ventos retornarão se o rei sacrificar sua filha mais velha, Ifigênia. Agamêmnon manda buscar a filha distante, mentindo que irá casá-la com Aquiles. A inocente moça chega na companhia da mãe Clytemnestra, que desconhecia a trama do marido e, apesar de todos os esforços, não consegue evitar o revoltante sacrifício. O resto vocês estão cansados de saber. Os gregos partem, combatem durante dez anos. Quando Agamêmnon retorna para casa, a rainha havia colocado um amante no leito do esposo.

A dança de Martha Graham é arrepiante. A infeliz rainha, obcecada pelo desejo de vingar a filha inocente, trama a morte do marido. Ela e o amante Egisto decidem assassiná-lo e se apoderarem do trono de Micenas. Agamêmnon trouxera como presa de guerra a princesa Cassandra, filha do rei troiano Príamo, que tinha o dom de prever o futuro. Mas, sobre ela pesava uma maldição de que ninguém acreditaria em suas profecias. Cassandra adverte o rei sobre a trama que o levará à morte, mas ele não crê em suas palavras.

A cena que tanto me marcou é a seguinte: Clytemnestra finge alegria com o retorno do marido e lhe prepara um banho. Enquanto ele se entrega ao deleite, a rainha o mata com um punhal. Transtornada de poder e sangue, ela joga sobre as costas o manto do marido e caminha pela casa. O Destino, representado por um bailarino de estatura descomunal, realçada pelos coturnos do teatro grego, põe o cajado sobre o manto que a rainha enverga e ele cai no chão. A realeza se esvai. O espectador estremece diante da representação de quanto é fugaz o poder humano. Não há texto, apenas um cajado que prende o manto ao chão, tirando da rainha o amparo de um símbolo antigo de poder.

Clytemnestra é morta pelos dois filhos, Orestes e Electra, que vingam o pai. Tocada pela tragédia da rainha infeliz, Martha Graham imaginou um final feliz, em que mãe e filhos se reconciliam e são perdoados pelos deuses.

Não sei que deuses nos perdoarão a vaidade e o desejo de poder. Sei que todas as vezes em que me deixo contaminar por essa quimera, O Destino, que nunca descansa nem fecha os olhos, atua com uma precisão absoluta. O barulho da queda do manto eu escuto nos sintomas de uma gripe, numa dor de coluna, num transtorno qualquer da saúde. As doenças, as calamidades, as guerras e a morte sempre atuaram estabelecendo limites ao poder dos homens. São a prova de nossa fragilidade, nos advertindo para avaliarmos melhor nossos supostos grandes feitos e o esforço gasto neles. É necessário não perder a medida das coisas. Como está escrito no Tao: quem se ergue na ponta dos pés, não pode ficar por muito tempo. 


por Ronaldo Correio de Brito, Escritor  |  Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV  (Blog do autor) / Tornado


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