A realidade é que o abandono pelo Ocidente dos seus aliados afegãos conduzirá a uma maior agressividade dos seus inimigos e a uma maior instabilidade regional, e que a vontade agora descoberta de apoiar o investimento em países terceiros em concorrência com o sistema chinês de pouco valerá se não se entender como deverão funcionar as peças de todo o tabuleiro.
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O abandono de Bagram
Construída pela União Soviética, a base aérea de Bagram continuou a ser nos tempos de presença ocidental a principal base aérea no Afeganistão, e o seu abandono ao saque, sem qualquer concertação com as autoridades afegãs, o símbolo mais claro do que é uma debandada mais do que qualquer retirada estratégica por parte dos EUA.
Os militares afegãos, com uma coragem que é de assinalar, vieram tomar conta das instalações que encontraram parcialmente saqueadas e parcialmente encerradas a cadeado e, nas palavras de um soldado citado pela agência France-24, assinalaram a sua vontade de resistir: ‘“O inimigo está determinado e definitivamente tentará atacar aqui”, disse Rafiullah enquanto dois helicópteros militares afegãos descolaram atrás dele. “Mas não lhes daremos essa oportunidade.” (…) Não viemos aqui para dormir. Todos aqui estão preparados para proteger Bagram. A nossa moral é elevada”, insistiu Rafiullah.’
Mas torna-se claro que os soldados afegãos estão perante uma situação dificílima, porque estão confrontados com um inimigo apoiado pela Rússia, pela China, pelo Irão e pelo Paquistão e estão a ser abandonados pelos seus principais aliados, os EUA, com consequências regionais e globais em cadeia, nas repúblicas da Ásia Central, por exemplo, a tentar a sua adaptação a um Afeganistão talibã que, milagrosamente, deixaria de ser um centro de expansão do terrorismo e fanatismo mas permitiria a estabilização da região.
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Déjà vu
Tudo isto faz naturalmente lembrar a diplomacia de Henry Kissinger e Saigão em 1975, com agravantes. Pessoalmente, porque se trata de uma situação que acompanhei, faz-me lembrar o Iraque em 2009 quando a administração Obama resolveu abandonar aos representantes locais da teocracia iraniana os seus aliados, com inúmeros a ser assassinados e o país a tornar-se a base do terrorismo internacional, o que nunca tinha acontecido com Saddam Hussein.
E tudo aponta para que a senda da debandada continue na aceitação pela diplomacia americana da nuclearização iraniana. É algo que os dirigentes de Teerão já dão por contado tendo a teocracia mesmo dispensado de fazer de conta que procedia a eleições presidenciais – com a nomeação do maior carrasco do regime para o posto – ou que obedecia a qualquer plano de restrição nuclear, com a metalização do urânio que apenas tem sentido para construir engenhos nucleares.
Neste último ponto, sendo verdade que a dupla Biden-Obama ultrapassou tudo o que de pior já se viu por parte da diplomacia americana, quanto ao Afeganistão há que reconhecer que o essencial da debandada já tinha sido negociado pela anterior administração americana.
Em tudo isto, como tem acontecido há décadas, tão pouco se ouviu falar de Europa, que se limitou a seguir silenciosamente os passos da liderança americana. A propalada noção de autonomia de defesa europeia não merece, e nunca mereceu nos últimos setenta anos, que se lhe atribua qualquer atenção séria. Não é nem nunca foi mais do que uma patética ilusão manobrada por quem pretende enfraquecer o Ocidente pela divisão.
Não há de resto no mundo nenhuma potência que possa substituir num horizonte razoável a liderança americana. Como tenho defendido, a Índia poderá vir a fazê-lo, mas daqui a no mínimo umas três décadas, acaso entenda dar no imediato prioridade a fazer sair da miséria e da iliteracia a massa da sua população adiando qualquer ensejo de liderança no entretanto.
Estamos por isso condenados a fazer esta viagem pelo desconhecido com os nossos vizinhos transatlânticos, como tem acontecido desde a segunda guerra mundial, e não temos aqui nada de novo a registar.
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E depois de Cabul?
A China, que se apresenta hoje como o principal patrono dos talibã, exulta naturalmente com a debandada americana, estando provavelmente confiante que os conseguirá manobrar tão facilmente como aparentemente tem conseguido manobrar o Irão ou o Paquistão países que têm rivalizado no patrocínio dos talibã nas últimas duas décadas.
Desde o princípio da era reformista de Teng-Hsiao-Ping (1978) até ao massacre de Tien-an-Men (1989) a China viveu uma época de liberalização económica que foi também uma época de liberalização política, enquanto geopoliticamente alinhou com o Ocidente na contenção da União Soviética. Como efeito colateral desse movimento, a China viu erguer-se no Turquestão Oriental (terra que originalmente era ocupada por povos de etnia turca e religião muçulmana, uigures em especial, que a China designa como Xinjiang, ou seja, ‘Nova Fronteira’) um movimento nacionalista e jihadista que, com o colapso da União Soviética e a queda do Afeganistão, se reforçou e se tornou um problema.
Depois de adoptar medidas de repressão mais ou menos clássicas, Pequim optou desde 2014 por uma política de aniquilação étnica e religiosa da população do Turquestão Oriental, política que, curiosamente, foi aceite sem reticências pela generalidade das potências islamistas (Irão, Paquistão e por último, a Turquia) incluindo aqui os talibã, o que é deveras significativo do que essas potências querem dizer quando atacam o Ocidente por causa da sua ‘islamofobia’.
Pequim parece assim convencida que poderá indefinidamente ter sol na eira e chuva no nabal, ou seja, beneficiar dos interesses comuns em combater a liberdade e a democracia sem sofrer com as disputas entre os vários interessados na aliança. Mais provavelmente, pode estar consciente de quão transitório é o actual arranjo, guardando para depois as medidas a tomar contra os seus potenciais rivais.
No Ocidente, parece imperar a convicção de que basta esperar que os vários poderes autocráticos seus inimigos se comecem a digladiar e que nada mais há a fazer, ilusão recíproca que se poderá vir a revelar como desastrosa.
A realidade é que o abandono pelo Ocidente dos seus aliados afegãos conduzirá a uma maior agressividade dos seus inimigos e a uma maior instabilidade regional, e que a vontade agora descoberta de apoiar o investimento em países terceiros em concorrência com o sistema chinês de pouco valerá se não se entender como deverão funcionar as peças de todo o tabuleiro.
A Ásia Central, e em particular o Uzbequistão, a quem a União Europeia concedeu recentemente o seu estatuto comercial mais favorável – o chamado GSP+ – será um palco central nesse jogo, ao qual tenciono dedicar alguma atenção.