Os 70 anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) podem ser examinados através de uma postura ligada ao conhecimento e aceitação do atualmente disposto em termos políticos e jurídicos.
Isso pode ser feito sem necessariamente realizar um questionamento da realidade ou, em outra direção, a partir de um exercício reflexivo questionador daquilo que a partir de 1948 foi oficialmente formulado no discurso ou exposto na prática.
Assumiremos a segunda opção e, como esse exercício não pode ser realizado no vácuo, optamos por nos deter no tema do refúgio. Não sem antes reconhecer que, para além de um balanço sobre a efetividade da Declaração, não há dúvidas quanto à importância excepcional do Documento como base para a arquitetura de um sistema de proteção internacional dos direitos e liberdades dos seres humanos. A conformação do sistema global de amparo, bem como de sistemas regionais, são uma conquista civilizatória porque se constituem em ferramentas essenciais para a promoção e salvaguarda dos direitos numa escala que seria inimaginável a princípio do século XX. (Ou: a menos de um século atrás).
Entretanto, uma simples mirada pelos jornais eletrônicos e impressos do Brasil e de outros países permite saber que o tema dos migrantes e refugiados está na ordem do dia do planeta. Caravanas de migrantes cruzam a América Central e o México em busca de refúgio nos EUA; venezuelanos cruzam a fronteira do Brasil e da Colômbia para acolher-se nesses países ou em outros da região – como Peru, Equador, Argentina e Chile. Milhões de pessoas se deslocam da Síria, do Sudão do Sul, do Iémen, do Myamar, da República Democrática do Congo para países vizinhos, devido a guerras ou perseguições.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em seu último relatório anual sobre as Tendências Globais do refúgio aponta números dramáticos de pessoas deslocadas pelo mundo: são cerca de 65 milhões de pessoas em situação de refúgio (deslocamento internacional), deslocamento interno (dentro do país) e apátridas (pessoas sem nacionalidade). Há uma urgência global em diminuir o risco de sofrer violência e morte dessas pessoas por meio de proteção e integração local. Tanto o direito internacional quanto os direitos internos tem um papel crucial nessa tarefa.
O desenvolvimento do Direito Internacional e dos Direitos Constitucionais pós Segunda Guerra permitiu que, a partir do primeiro, fosse aprovado um estatuto internacional para os refugiados, consubstanciado na Convenção de Genebra de 1951; e a partir dos segundos, houvesse uma progressiva inclusão da proteção constitucional para o asilo, por diferentes fundamentos. Daí haver, hoje, um duplo controle de constitucionalidade-convencionalidade a ser aplicado pelo Poder Judiciário nessa matéria.
Entretanto, existe uma diferença entre o direito dos migrantes (regulado internacionalmente pela Organização Internacional das Migrações-OIM) e o direito dos refugiados (regulado pela Convenção de Genebra-1951 e gerido pelo ACNUR). Por isso, a maioria dos países diferencia migrantes e refugiados, e a eles aplica normas distintas. No Brasil, por exemplo, os migrantes são regidos pela recente Lei de Migração (Lei 13.445/2017) e os refugiados são regidos pela Lei de Refugiados (Lei 9.474/1997).
Essa diferenciação, que se baseia na lógica da urgência e da salvaguarda imediata da vida das pessoas (por isso o estatuto dos refugiados é mais benéfico e comporta mais obrigações aos Estados) não é fácil de ser gerida. Por exemplo, em fluxos maciços de migrantes, como de venezuelanos em direção ao Brasil e de centro-americanos em direção aos EUA, há tanto migrantes como refugiados. São os chamados fluxos mistos. Mas como saber quem é migrante e quem é refugiado?
Para realizar essa identificação, os Estados devem ter órgãos de determinação do refúgio. No Brasil, é o Conselho Nacional Para os Refugiados (CONARE). Nos EUA, são autoridades migratórias e juízes de migração que decidem sobre a concessão do status de refugiado. Mas o direito internacional e os direitos constitucionais asseguram que todas as pessoas que alegam perseguição (e também violações maciças de direitos humanos) em seu país de origem possam adentrar outro país, mesmo sem ter documentos, e não podem ser devolvidos (deportados ou repatriados), devido a um princípio fundamental do Direito Internacional: o Princípio da Não-Devolução (Non-refoulement).
Não obstante a existência dos marcos jurídicos adequados para enfrentar as problemáticas migratórias, a crescente onda política de ultra-direita em diversos países, a começar pelos EUA, mas igualmente no Brasil, vem questionando e ameaçando o direito legitimo e legal de migrantes (que devem ser tratados com enfoque em Direitos Humanos) e de refugiados em acessar e exercer seus direitos. Não por acaso, migrantes e refugiados são grandes desafios para o direito, para o Estado de direito e para as democracias contemporâneas.
Refugiados na antessala e na fronteira final do Direito
Os informes do Acnur, as estatísticas de diversas organizações de direitos humanos sobre migração forçada e refúgio, bem como a existência do Estatuto dos Refugiados e a exigência internacional do cumprimento das suas normas atestam, infelizmente e de maneira dolorosa, que o fenômeno se incrementou nos últimos anos. E esse incremento não pode ser analisado sob uma ótica precária, que desconheça as causas que originam o problema.
Certamente, se há refugiados e migração forçada a causa se encontra nas gravíssimas violações aos direitos humanos, na violência estrutural, no desenvolvimento de planos de expulsão de comunidades inteiras, por razões econômicas, políticas ou culturais. Por isso, os migrantes forçados são a constatação da fraqueza do Direito e dos direitos, e cada pessoa fica na antessala do reconhecimento por parte de outros Estados da sua condição de refugiado.
Contudo, e além do Direito, o fenômeno retrata o lado mais cruel das imposições de um modelo desumanizado de funcionamento da economia e da política que se vale da violência como mecanismo eficaz para se sustentar. Em outras palavras, o sério e angustiante drama dos refugiados obriga a uma reflexão sobre o desenrolar da crise do capitalismo, dos modelos de Estados liberais pós-modernos e sua capacidade de se situar como estruturas políticas e jurídicas para atender as demandas históricas dos grupos humanos marginalizados como resultado de passados colonizadores ou de abandonos, numa sociedade internacional pautada por estruturas hegemônicas de poder.
Para o Direito, o problema coloca em pauta a necessidade de superar formas de entendimento das experiencias jurídicas alicerçadas na eficácia intrasistémica, para transcender ao conhecimento dos fatores que impedem a efetividade normativa, tanto das normas constitucionais quanto das oriundas dos mais valiosos tratados e convenções em matéria de direitos humanos.
O notável na atual fase é que a grave situação se agudiza e se desenvolve em meio a mudanças drásticas na correlação de forças nos Estados centrais e periféricos nos quais uma onda neoconservadora, e ideologicamente avessa à efetivação dos direitos, avança sobre as instituições, ponde em risco conquistas que se esperava consolidadas desde a DUDH de 1948.
O efeito é que os migrantes forçados perdem ainda mais em coesão de grupo e sofrem um colapso maior na sua capacidade de sobreviver. Consequentemente, nesta etapa começam uma jornada à defensiva, de manutenção da sua identidade, tentando se incorporar a uma nova estrutura social administrada por grupos humanos que ainda desconhecem e realizando esforços de integração em circunstâncias mais desfavoráveis.
Essa perda dos elementos socioculturais ativos das nações em crise não é apenas de cada Estado, mas da humanidade como um todo, ou seja, tem um impacto universal. Daí que, diante do conservadorismo, a xenofobia e a negação dos direitos a resposta jurídica deva partir da reafirmação da universalidade, da internacionalização, do humanismo e da indivisibilidade dos direitos humanos.
Talvez, por essas razões, e época pretérita e que parecia esquecida, a primeira grande mudança com impacto no Direito foi a necessidade história de ampliação do conceito de refugiado, detectada em princípio por Hanna Arendt, quando em 1943 escreve seu artigo We refugees e inicia suas considerações dizendo claramente que os refugiados não gostam que se lhes chame refugiados. A expressão “refugiado” era semelhante à de asilado, condição de pessoa que procurou abrigo porque cometeu crime de opinião ou realizou atividades de oposição ao governo. Reforçou H. Arendt a importante questão de que com os refugiados judeus mudou o sentido do termo refugiados posto que muitos dos que abandonaram Europa não tinham militância social ou política, senão que saíram do continente ou se converteram em migrantes forçados na Europa pela sua condição de judeus. Por outras palavras, a pessoa refugiada deixou de ser alguém que realizava atividades de conhecimento de todos, uma militância, e passou a ser a pessoa anônima.
Em lugar de haver uma restrição ou diminuição do número, se aumentou o espectro dos refugiados como uma necessidade dos tempos, o que teve consequências jurídicas importantes e diretas no momento de fazer ampliações à definição de refugiado no Estatuto de 1951.
O desenvolvimento dessa ampliação também se evidenciou na América Latina, quando no terceiro ponto da Declaração de Cartagena de 1984 se estendeu a proteção do refúgio. O ponto, claramente expõe que:
face á experiencia adquirida pela afluência em massa de refugiados na América Central, se torna necessário encarar a extensão do conceito de refugiados, tendo em conta, no que é pertinente, e de acordo com as características da situação existente na região, o previsto na Convenção da OUA (art. 1º, par. 2) e a doutrina utilizada nos relatórios da Comissão interamericana dos Direitos Humanos. Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçados pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias eu tenham perturbado gravemente a ordem pública”.
Esse ítem fortaleceu a proteção dos refugiados na região. porque modificou as insuficiências dos programas de proteção regional, que atuavam exclusivamente para a concessão de asilo regularmente em favor de figuras políticas, ampliando-se a grupos de indivíduos ameaçados por encontrar-se estabelecidos ou residindo em lugares nos quais se registravam violações sistemáticas de direitos humanos, em muitos casos protagonizadas por agentes do próprio Estado.
Vale apontar que esse dado explica a resistência inicial de alguns países da região, que ficaram sujeitos a um monitoramento muito mais detido da comunidade internacional e das agências da ONU, especialmente de entidades como o ACNUR.
Dessa maneira, no contexto regional o tratamento dado ao refúgio passou a ser jurídico-humanitário e não resultado exclusivo de considerações apenas políticas. A mudança de perfil dos refugiados foi atendida aumentado o espectro de proteção e fornecendo novas condições de exame do refugio no subcontinente.
Veja-se que a Lei 9474 de 1997 determina no artigo 1º, III, que “será considerado como refugiado todo indivíduo que (…) devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”.
A redação brasileira restringe o alcance daquilo que foi pactuado em Cartagena, tendo em vista que conforme a lei a pessoa deve ser considerada “obrigada” a deixar seu país por algo que deve ser objetivamente avaliado. Da ameaça genérica de Cartagena, passamos à exigência de uma ameaça específica.
A Declaração de Cartagena, a Lei 9474 de 1997 e a Declaração Universal de Direitos Humanos devem ligar-se, na sua interpretação, com os princípios e regras contidos na Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, o exercício hermenêutico conduz a que o Estado brasileiro, fundado na dignidade humana, (artigo 1, III) não possa negar o direito ao refúgio quando a pessoa se encontre em circunstâncias que coloquem em risco sua vida e dignidade. O refúgio funciona como instrumento imprescindível para defender outros direitos, e deve ser garantido até a solução do problema ou o reassentamento da pessoa, vale dizer, o traslado ao território de outro Estado no qual esteja a salvo. Se outra for a interpretação – menos benéfica ao ser humano – então o Estado estaria por cima dos indivíduos, como ameaça à dignidade humana. E voltaríamos ao tempo pré-iluminista, das razões de Estado.
por Pietro Alarcón e Gilberto Rodrigues | Texto original em português do Brasil
Pietro de Jesús Lora Alarcón, Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Com estudos pós-doutorais na Universidad Carlos III de Madrid e na Universidade de Coimbra. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito da PUC/SP e da ITE de Bauru/SP
Gilberto M. A. Rodrigues, Bacharel em Direito e Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP e realizou pós-doutorado no Center for Latin American and Latino Studies da American University, em Washington DC. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC)
Exclusivo Editorial PV (Empório do Direito) / Tornado
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