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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

A dignidade humana além-fronteiras

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Zoltan Mathet / Associated Press

… (especialmente a francesa e alemã) com a detenção provisória, interrogatórios intimidatórios e exigência absurda de provas de que não pretendia emigrar de Portugal.

Foi uma experiência pessoal que não é comparável às fronteiras transformadas em infernos, às embarcações que a Europa deixou naufragar com milhares de pessoas a afogar-se, às supremas humilhações de refugiados que fui acompanhando especialmente quando representei os meus concidadãos no Parlamento Europeu, mas que me serviu para me dar a insubstituível experiência nestas matérias para saber do que estamos a falar quando nos referimos ao fechar de fronteiras.

Em 1982 vi-me pela primeira vez na situação de assistir ao drama de refugiados. Um casal de iranianos refugiados em Londres tinha vindo de automóvel buscar à Turquia um primo fugido ao terror do regime de Khomeini. Viajei com eles de Nápoles a Génova. Tinham começado por subornar os guardas fronteiriços turcos para que o primo pudesse passar, e dirigiam-se a Lisboa porque Portugal era dos únicos países da Europa que não tinha fechado fronteiras a iranianos, sendo que outros países (como a Itália e a Espanha) davam ainda vistos de passagem.

Como não tinham conseguido visto de passagem em França, foram apanhar o ferry de Génova para Barcelona, enquanto eu continuei o mesmo caminho por estrada. Escrevi então pela primeira vez na imprensa nacional apelando a que as autoridades portuguesas não fechassem também a fronteira aos refugiados iranianos.

Quando parlamentar europeu, iniciei as minhas aventuras nas estradas do Médio Oriente, substancialmente mais arriscadas que as minhas jovens aventuras europeias, e acabei ao fim de peripécias várias por ser acolhido por uma família iraquiana que, anos mais tarde, tive que ajudar a fugir do Iraque pelo Curdistão para o Egipto.

Foram anos marcados por uma intensa actividade política, diplomática e pessoal em que fui por um lado aprendendo um pouco da realidade do “Grande Médio Oriente” e por outro fazendo tudo o que podia para acudir às terríveis situações com que me deparava.

E talvez porque humanamente o drama dos refugiados, a vontade de conhecer mundo, o profundo respeito pela dignidade humana foi o que mais marcou a minha vida, acompanho com muita emoção os dramas a que vou assistindo.

Estou consciente da lógica profundamente tribal que a humanidade põe em marcha e que normalmente vai em crescendo com as dificuldades reais ou imaginárias com que se depara, e que a torna presa fácil de discursos xenófobos e acções inumanas, lógica que não conhece fronteiras.

Não tenho também ilusões quanto à hipocrisia e estratégias políticas inconfessáveis que frequentemente se escondem ou que manipulam estes dramas. Quando promovi no Parlamento Europeu um jantar com o corpo diplomático árabe – com presenças da grande maioria dos embaixadores da região – tive que enaltecer a Síria (na altura o principal país que acolhia refugiados iraquianos) embora não ignorasse as suas motivações pouco humanitárias ou o desumano bloqueio imposto pela Síria aos palestinianos fugidos de Bagdade.

Na sequência do 11 de Setembro, os EUA criaram uma nova política e um novo departamento – o “Department of Homeland Security” (DHS) – que com 230.000 funcionários se tornou a maior máquina administrativa americana.

A lógica do DHS é a de garantir a todo o custo a imunização dos EUA a ataques do jihadismo como o 11 de Setembro e, desse estrito ponto de vista, tem tido um sucesso assinalável. Apesar de serem o alvo mais apetecido do jihadismo, os EUA têm sofrido dentro de fronteiras menos ataques terroristas do que países ocidentais congéneres (França, Reino Unido, Alemanha, Canadá ou Espanha) e mesmo aqueles de que tem sido alvo têm sido perpetrados por jihadistas fanatizados dentro das fronteiras americanas.

Penso no entanto – e defendo esse ponto de vista em livro sobre terrorismo que se encontra para publicação – que este sucesso de curto prazo é suicidário a longo prazo, por assentar em medidas draconianas generalizadas que tratam da mesma forma os jihadistas e as suas vítimas.

Ora o principal objectivo táctico do jihadismo é ganhar a guerra dentro das suas fronteiras, subordinando os cidadãos dos países muçulmanos à lógica do jihadismo. Se o Ocidente trata todos os cidadãos do Iraque e da Síria como se fossem jihadistas – quando na verdade a maioria dos que fogem desses países o fazem pela razão contrária, por oposição ao jihadismo – o Ocidente está não só a proceder de forma desumana mas também a cometer um erro político estratégico.

As medidas de barragem indiscriminada a estrangeiros promovidas pelo DHS têm evoluído em crescendo. Assim, o Presidente Obama bloqueou em Dezembro de 2015 de forma quase automática o acesso a todos os que tivessem passado pelo Irão, Iraque, Síria e Sudão, tendo essa lista sido já em Março do ano passado alargada à Líbia, Somália e Iémen. Pude acompanhar com imensa preocupação as consequências dramáticas desta estratégia política no Iraque.

O presidente Trump, numa das suas primeiras medidas, confirmou o bloqueio sobre estes sete países (mudou o texto ligeiramente para o tornar ainda mais imperativo, embora por outro lado as limite agora a um prazo) tendo desencadeado uma onda de protesto de dimensões inéditas.

Se se tratasse de rever uma estratégia ocidental que me parece moral e politicamente errada, eu estaria naturalmente na primeira linha a aplaudir. Creio no entanto, que se trata de pura manipulação mediática e política que irá contribuir mais para o agravamento do que para a solução dos problemas.

Em primeiro lugar porque assenta numa grosseira manipulação dos factos e porque promoveu à primeira linha dos pseudo-humanistas exactamente aqueles que mais responsáveis são pelo actual estado de coisas; em segundo lugar porque confunde a arte de esconder mediaticamente o que se faz com a realidade dos actos praticados e em terceiro lugar porque vai contribuir para convencer ainda mais a generalidade dos cidadãos que este caminho é o caminho a seguir.

Nota do Director

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