Em O conto da aia, romance da escritora canadense Margaret Atwood lançado em 1985, um golpe de uma facção fundamentalista institui nos Estados Unidos a República de Gilead, uma ditadura violenta em que a religião é usada como estratagema para subtração dos direitos civis, e o corpo da mulher se torna propriedade de uma elite hipócrita e corrompida. A distopia de Atwood parece ganhar ares de premonição quando se atenta para o contexto mundial e do nosso próprio país.
No cenário internacional, impera a implosão dos organismos internacionais como espaços de distensionamento, diálogo e reafirmação dos princípios de direitos humanos e das relações entre os países. Práticas de exclusão e preconceito contra imigrantes, construção de muros e fechamento de fronteiras tem sido a tônica da política externa de muitos países. O outro é visto como ameaça ao emprego e à vida das pessoas. Se fosse para escolher um retrato perfeito do abismo em que estamos, este seria materializado em um barco à deriva cheio de imigrantes.
Em junho deste ano, a embarcação Aquarius, de uma instituição de caridade, resgatou 629 imigrantes ilegais que tentavam cruzar o Mediterrâneo, vindo da costa da Líbia. Entre os imigrantes, havia 123 menores desacompanhados, outras 11 crianças com famílias e sete mulheres grávidas. Eles são de 26 nacionalidades diferentes, sendo 23 africanas e três asiáticas (Afeganistão, Bangladesh e Paquistão). A Itália, país que estava mais próxima da embarcação proibiu que ela atracasse em seus portos. A Espanha acabou acolhendo.
Sob as regras do direito internacional, qualquer navio que receba pedido de ajuda no mar deve prestar auxílio, e o país responsável pela área deve fazer o resgate. No caso, Itália e Malta tinham os portos mais próximos ao Aquarius. Às favas as regras do direito internacional.
Ou seja, cada vez mais, regras, documentos normativos e acordos internacionais valem pouco ou quase nada. Os esforços de construção de grandes pactos e acordos normativos do pós-guerra entre os países se esfarelam sob a batuta de líderes irresponsáveis e do populismo de caráter autoritário.
Por aqui, desde o golpe de 2016, tem feito mais sentido falar em distopia do que em utopia. A desesperança, o rebaixamento do debate público, a ascensão de grupos políticos fundamentalistas, o incremento a níveis absurdos do medo, a banalização da violência contra o outro, a ausência de alteridade, a dessacralização da vida, a pilhagem do patrimônio público por décadas e o abandono paulatino da tentativa de construção de um país mais justo sendo substituído pela ideia da ordem, faz com que um abatimento profundo atinja as forças progressistas.
O julgamento e deposição de uma presidente legitimamente eleita mediante uma farsa jurídica, as ilegalidades e as violências praticadas por operações que a pretexto de combater a corrupção se tornaram o local privilegiado da quebra de direitos individuais e da naturalização de ilegalidades, e a reprodução nauseante desses fatos contribuíram para disseminação do caos e da desesperança.
A canalização desses movimentos políticos, somado a uma profunda crise econômica, social e ambiental acabou se tornando o substrato para o atual quadro político. Para as forças de esquerda, primeiro foram cortes drásticos na esperança com derrotas seguidas no campo jurídico, depois veio a incredulidade e, na sequência, a angústia fruto do questionamento sobre o que será do futuro.
Não há outra palavra para descrever a distopia de 2019 do que crise. Crise econômica porque a política não será a de geração de empregos, industrialização e desenvolvimento, mas sim aprofundamento da cartilha neoliberal com a venda de “todas as estatais” ou da maior parte delas para conter a dívida pública. Na questão ambiental, o Brasil poderá assistir a uma das maiores catástrofes da sua história com a entrega de órgãos de controle, como IBAMA e CNTbio, para ruralistas. E, no campo social e das relações humanas, a consolidação da barbárie.
A crescente militarização da vida cotidiana, com guardas municipais ganhando cada vez mais status de polícia e agindo como se assim o fosse – Dória inclusive tentou mudar o nome em São Paulo -, o empoderamento das polícias pelo discurso que prega uma política de extermínio, aumentará ainda mais os números da letalidade policial nos Estados, notadamente nas regiões mais pobres. Acrescente a esse trágico enredo a liberação do uso de armas indiscriminadamente para a população civil.
A alteração de leis como o Estatuto do Desarmamento, da Criança e do Adolescente, Lei das Execuções Penais e a condução das propostas de alteração de códigos em tramitação no Parlamento elevará os patamares de recrudescimento penal a níveis ainda mais desumanos e teratológicos. Progressão de regime, ressocialização, penas alternativas, serão palavras de museu. O saldo será o Brasil próximo de se tornar o país que mais encarcera no mundo e o custo se traduzirá em palavras como dor, injustiça, sofrimento, atentados diários e constantes à dignidade da pessoa presa e da sua família.
Diante da incapacidade de gerir uma nação como o Brasil, se apostará nessas para desviar a atenção da população. Somado a isso, haverá um avanço preocupante das pautas relativas ao corpo da mulher, sua saúde e sua autonomia de decidir. Da mesma forma, no campo dos direitos civis e da livre orientação sobre o amor.
E, infelizmente, não se esgota aqui a projeção de cenários no caso de vitória do candidato que lidera as pesquisas. Ao tentar realizar esse tenebroso exercício de visualizar o que pode ser do futuro, tem-se como ainda mais imperdoável a covardia de lideranças políticas, intelectuais e artistas que simplesmente lavam as mãos, muitas vezes bem distante do próprio país, pensando em 2022, como se ele pudesse existir depois do que se desenha para 2019.
Neste contexto, não há outra saída que não recolocar a utopia no centro da ação política, no sentido de recuperar a esperança de um rearranjo e ruptura num curto prazo, pois se há algo que ainda não nos retiraram é a capacidade de sonhar e projetar um mundo melhor, ainda que isso pareça tão distante dos nossos dias. Ainda que a insanidade do tempo presente cubra de névoas, quase ao ponto de cegar, a nossa própria visão.
Por Patrick Mariano, Advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado
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