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Sábado, Julho 27, 2024

A energia e a lógica da batata

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

A Europa da cidadania energética vai precisar de enfrentar esta Europa da burocracia e interesses instalados para poder desabrochar, e esse é um dos maiores desafios que temos pela frente.

A velocidade com que a humanidade está a sair da dependência de fontes minerais de energia é estonteante. Numa vasta parte do globo, a produção de energia a partir do Sol ou do vento é hoje mais barata que as alternativas fósseis, enquanto se vão observando progressos assinaláveis na energia marinha.

1. A revolução energética

O custo de armazenamento em baterias convencionais – que dependem de fontes minerais raras – está a evoluir favoravelmente, avançando-se na descoberta de baterias feitas com materiais mais abundantes, utilização de hidrogénio e outras formas simples mas até hoje inexploradas, como o armazenamento térmico na estrutura de edifícios ou a utilização da energia gravitacional do entulho (à imagem do que se faz com a água).

Mais interessante ainda, as novas tecnologias permitem soluções eficazes e concorrenciais à escala do cidadão. Hoje, já não é ficção científica: se tiver uma moradia no Sul de Portugal e melhor ainda se for perto do mar, pode instalar um sistema solar/eólico que lhe permite satisfazer todas as suas necessidades energéticas, que podem incluir piscina, veículo automóvel, rega e alimentação de gado a preços concorrenciais com os que lhe oferecem os monopólios público-privados.

Ou seja, está a abrir-se a uma camada cada vez maior da população do mundo a possibilidade de deixar de depender de combustíveis fósseis e dos monopólios que os controlam, tratando da sua energia da mesma forma como – com uma pequena courela – pode tratar de se auto-aprovisionar de batatas, ou de outras culturas mais adaptadas aos seus solos, à sua bolsa ou ao seu paladar.

Aquilo que se consegue já hoje facilmente no campo poderá ser mais complexo, mas perfila-se também no horizonte urbano, com inovações extraordinárias no domínio arquitectónico e informático (aqui, registe-se abarcando também os vegetais em que se avança para a cultura vertical sem solo).

As possibilidades que se abrem aos nossos netos são assim verdadeiramente prodigiosas, e estamos no fundo numa corrida entre as formas cada vez mais sofisticadas que a humanidade encontra para se destruir e aquelas que abrem novos horizontes de prosperidade e de respeito pelo meio ambiente.

A revolução no campo energético, se acompanhada por outra revolução equivalente na utilização do solo e água abre a possibilidade de interrompermos o ciclo de vasta degradação do planeta com consequências trágicas para a biodiversidade e todos os outros domínios da sanidade ambiental planetária.

2. A resistência da oligarquia

A revolução energética tem decorrido exclusivamente dos progressos da humanidade em matéria de investigação e desenvolvimento que tornaram as novas soluções mais concorrenciais, totalmente à margem da pesada infraestrutura internacional burocrática que foi montada nas últimas décadas em nome da não mudança do clima.

O movimento ambientalista começou prisioneiro de uma ética conservadora de pecado e expiação implícita no conceito de limites do crescimento tornado célebre pelo Clube de Roma, que actualizou para o século XX a célebre doutrina de Thomas Malthus que contrastava a progressão geométrica da população com a progressão aritmética dos recursos.

Com o ‘desenvolvimento sustentável’ a doutrina ganhou um perfil mais moderado, todavia assente na mesma dicotomia recursos-necessidades que falha o que há de mais essencial, que é a da integração do desenvolvimento com a conservação da natureza.

A conferência do Rio foi o passo mais promissor ao integrar as várias valências ambientais (água, terra, ar, biodiversidade) com a mais elementar das valências sociais, a luta contra a pobreza, mas ela foi rapidamente esquecida e substituída por uma visão fracturada onde as emissões atmosféricas foram separadas do seu contexto e reconvertidas a equações climáticas assentes mais em presunções do que em ciência.

Pior ainda, secundarizou-se ou esqueceu-se totalmente o impacto maior da utilização dos solos nas emissões atmosféricas, bem como o papel essencial da investigação, desenvolvimento e disseminação de novas tecnologias, substituindo essa preocupação com um monstruoso sistema de cálculo nacional de emissões convertidas a uma unidade carbono a ser limitadas e jogadas na bolsa, um sistema que conseguiu juntar o pior da economia de casino com o pior da burocracia.

A ‘descarbonização’ passou a ser verbo-de-encher, argumento utilizado para aumentar as desigualdades por via fiscal, para fomentar a perigosíssima e caríssima energia nuclear ou, pior ainda, para cimentar o poder e os lucros dos grandes grupos energéticos com base em complexos sistemas de subsidiação cruzada (Portugal foi aqui um dos piores exemplos).

3. Regulação energética

Perante a revolução energética é claro que temos de repensar profundamente a regulação energética que perdeu a sua razão de ser original: o assegurar de um serviço que só era pensável a grande escala.

A electricidade é um bem essencial, como mais essencial ainda são as batatas e toda a alimentação, o que não quer dizer que o acesso a eles tenha de ser estritamente regulado. O exemplo das batatas é aqui importante, por serem elas a mais barata fonte alimentar. A introdução da batata na dieta alimentar europeia levou a que ela se tornasse na base alimentar dos mais pobres e, quando a sua produção foi fortemente atacada por doença, provocou uma célebre mortandade na Irlanda. Esse exemplo serve para entendermos a necessidade de manter alguma regulação.

Há assim que encontrar mecanismos de regulação que impeçam catástrofes em bens essenciais sem com isso coartar o seu livre desenvolvimento.

Sendo cada vez menos necessária a regulação da produção moderna de energia – ou seja, a produção sem recurso a fontes minerais – a regulação da distribuição eléctrica continua a ser importante, como forma de assegurar que os vários produtores são tratados deforma equitativa, porque com as novas tecnologias, todos nós mesmo que essencialmente consumidores, podemos também ser produtores, mesmo que em pequena escala.

Fora isso, e por algum tempo, enquanto a produção de energia renovável não se vulgarizar ao nível da produção das batatas, será necessária alguma regulação subsidiária e decrescente da produção energética, com recurso a velhas fontes energéticas.

É neste contexto que um pacote de oito peças legislativas com centenas de páginas, proposto em 2016, e que deverá ser finalizado nos primeiros meses de 2019 deve ser apreciado. Afirma a Comissão Europeia no seu preâmbulo que o pacote se destina a dar poderes ao consumidor para a transição energética, intenção que é desmentida pelo que se segue, a começar pela sua desnecessária complexidade que torna impossível o seu manuseamento pelo cidadão.

A questão essencial é mesmo essa, a de que o cidadão deixa de ser necessariamente apenas consumidor e torna-se consumidor e produtor, sendo que é nessa dimensão que tem de ser considerado, o que não acontece neste pacote legislativo.

O único domínio onde a Comissão deveria prever normas taxativas que assegurem a equidade de tratamento do cidadão como produtor e consumidor com organizações de maior capacidade e poder económico é o da regulação da distribuição, mas nada disso é feito.

A Comissão prevê um regulamento que cria uma agência europeia (as agências têm apenas poder delegado pela Comissão para gestão) para a ‘cooperação’ dos reguladores energéticos europeus, ou seja, um instrumento sem regras obrigatórias e que trata dos reguladores com o respeito que não tem pelos parlamentos nacionais.

O imenso pacote legislativo está feito para assegurar a continuidade do velho sistema eléctrico dominado por formações de carácter oligopolista e as burocracias que com eles convivem e a tornar mais difícil o exercício pleno da cidadania que passa hoje por garantir a todo o cidadão o direito a ser tratado de forma equitativa como consumidor ou produtor.

A Europa da cidadania energética vai precisar de enfrentar esta Europa da burocracia e interesses instalados para poder desabrochar, e esse é um dos maiores desafios que temos pela frente.

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