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Domingo, Novembro 3, 2024

A esperança hipotecada

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

Alexandre HonradoHá anos, dei comigo a pensar que concordava poucas vezes com aquilo que lia.

Isso preocupou-me muito (até há pouco tempo), porque sentia a necessidade de me tornar mais próximo dos outros para me aceitar como sou.

Agora, enfermo das mesmas doenças de que sofre o mundo ocidental, dou comigo a concordar menos vezes ainda com aquilo que leio – em especial se é opinião emitida, ao modo de juízo de valor (coisas em que somos pródigos, sem bases que nos sustentem).

Como escrevo, esforço-me cada vez mais por aceitar-me

Ao perseguir elementos da História, os factos dão-nos alguma tranquilidade. Contra eles, os argumentos sossegam-nos ou, pelo menos, posicionam-nos.

Ver o que a direita brasileira faz hoje, reeditando os idos de 1964, é uma fotografia da história que podemos usar como comparação com muitos álbuns que julgávamos arquivados.

Outro tanto no que respeita àqueles que brandem, em língua quase portuguesa, as suas frustrações, somando boatos como se fossem tábuas de salvação. Não passa tudo de um golpe de estado onde dois projectos de vida opostos saem à rua para defender ideologias que, provavelmente, serão vilipendiadas pelos protagonistas que as deviam realmente defender.

Pelo meio fica o povo real, que sofre sempre as consequências e que desconhece a cor das bandeiras com que a história tapa o sol. Antes disso, a sociedade foi inteligentemente minada, por pequenas e grandes unidades de raiz religiosa, fomentando rivalidades e ódios, por órgãos de comunicação ao serviço de interesses muito definidos, fomentando rivalidades e ódios, por uma rede de justiça aplicada, distante da justiça aplicável e instrumentalizada de uma forma surpreendente – e sim, fomentando rivalidades e ódios.

É fácil ver que a história já nos mostrou tudo isto, aqui mesmo ao pé de nós, e que o futuro terá a oportunidade de compreender o que o presente e o passado ignorou.

O mundo está mesmo a mudar – como já mudou tantas vezes e nos esquecemos, impunemente, como o fez e com que consequências. A nossa era é sempre a mais sofrida.

O poeta Manuel Gusmão diria que sobem à cena os teatros do tempo. Daniel Innerarity, que foi aclamado como um dos 25 grandes pensadores do mundo (e que o mundo, em geral, ignora), com o seu optimismo, diria que transformámos o futuro na lixeira do presente.

esperança hipotecada

O poeta escreveria que isto é “a incompleta e suspensa arquitectura de um pássaro” e o filosofo que “no reino dos seres vivos, o homem é o único que sabe que há futuro”

Repito porém que estou numa fase tão inquieta que já nem concordo com poetas ou com filósofos – sendo que, mesmo assim, serão dos poucos a manter o último reduto das ideias.

Ao poeta falta a fímbria real que permita sairmos ilesos dos ataques. O filósofo equivoca-se. Deixámos de saber que há futuro.

Reparem nas religiões: negam ao homem a capacidade de saber que há futuro feito por si ou por cada um de nós. Apontam-nos a esperança: que esperemos pelo Messias; prometem-nos o paraíso, o Éden, o reino de Deus, ou, igualmente magnífico, um lugar de grande sensualidade onde os que o alcançarem “… se deitarão sobre leitos incrustados com pedras preciosas, frente a frente, onde lhes servirão jovens de frescores imortais com taças e jarras cheias de vinho que não lhes provocará dores de cabeça nem intoxicação, e frutas de sua predilecção, e carne das aves que desejarem. E deles serão as huris de olhos escuros, castas como pérolas bem guardadas, em recompensa por tudo quanto houverem feito. (…) Sabei que criamos as huris para eles, e as fizemos virgens, companheiras amorosas para os justos.
(Alcorão, surat 56, versículos 12-40. Traduzido de uma versão em inglês).

Quando vemos Salah Abdeslam, o fugitivo mais procurado pelos ataques de Novembro em Paris, capturado pela polícia no bairro de Molenbeeck, em Bruxelas, e o seu ar de menino triste, ou o alucinado Trump, a convocar os americanos para a autodestruição e para um destino aziago de confrontos e barbárie destruidora do que nos resta de humano, quando vemos o pobre ignorante bombista turco que, por não saber fazer uma bomba, matou pelo menos quatro pessoas e feriu outras 36 na Avenida Istiklal, a mais famosa artéria comercial do centro turístico de Istambul, na Turquia, quando o seu destino era outro e mais mortífero, quando vemos todas estas coisas, mais as que vamos enterrando na areia da memória e as que vamos temendo como cenários possíveis, perdemos a perspectiva e usando a prospectiva é a instabilidade dos prognósticos que vislumbramos.

Leio cada vez mais. Leio-me como se disso dependesse o mundo. E sou mais um dos analfabetos com a esperança hipotecada.

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