A abstenção não é razão, é uma derivada, entre decepção e crispação, com a primitiva na traição (e incompetência) destas pobres “elites” e na erosão da indispensável confiança.
Espuma da vaga, importa olhar a abstenção para daí passar à análise do mecanismo interno da vaga que gera (também) a espuma. A caricatura do problema foi feita por Coluche, um francês famoso do mundo do espectáculo, que um dia disse que “se votar servisse de alguma coisa, há muito que teria sido proibido”.
O que se esconde atrás da “boutade” de Coluche é o desinteresse dos eleitores, que perdem o interesse em votar, quando apercebem o que se passa diante dos seus olhos como um “circo” em que a política não é mais que uma alternância sem alternativa. E em que, portanto, o resultado pouco importa porque os vencedores são sempre os mesmo, os “donos disto tudo”, e em que o jogo do voto é visto como não valendo a deslocação até às urnas.
Aqui, nesta percepção, se fundamenta um divórcio, se abre uma brecha entre o eleitorado e as “elites”. Em linguagem de marketing dir-se-ia que uma boa parte da “procura” se desinteressou dos produtos que a “oferta” tem para apresentar… Este desinteresse está a tornar-se um sintoma destes tempos em todo o Ocidente, tornando a abstenção o verdadeiro primeiro partido das chamadas classes populares. Os eleitores parecem cada vez menos capazes de confiar e conviver com as “elites” dominantes e menos capazes ainda de imaginar um destino comum com elas.
Se a tendência tem já umas décadas, agravou-se na última meia-dúzia de anos, desde o rebentar da crise financeira de 2007/008, provocada pela elite financista. Os eleitores tiveram aí a percepção de que a elite política, em todo o Ocidente, protegia e era cúmplice desses fautores de crise. A confiança no “sistema” sofreu aí o seu maior abalo desde a II Guerra. George Friedman escreveu, logo na altura, uma lúcida análise sobre este abalo maior na confiança dos eleitores na elite política. A crise financeira forneceu, portanto e um tanto paradoxalmente, o momento de grande afirmação do que, no fim dos anos 90, o intelectual Cornélius Castoriadis já tinha detectado e tipificado como a “subida da insignificância”.
Ou seja, se entre os eleitores vinha a expandir-se a ideia de que o resultado do voto não muda grande coisa nas suas vidas e que, portanto, é despiciendo votar, o comportamento da elite política perante a crise financeira confirmou amplamente essa ideia. Os responsáveis políticos, em funções, não souberam responder a estes sentimentos do eleitorado que os interpelam. A grande questão que se coloca à instância política é a de encontrar quem seja capaz de encontrar as respostas a esses sentimentos e de, assim, reunificar o que se está a dispersar.
Passados estes anos sobre o rebentar da crise de 2008, os eleitorados na sua desilusão mostram tendências de procurar um novo tipo de políticos, começam a procurar autenticidade. Como referiu há dias o “mago” David Axelrod, neste emergente contexto, o mais apurado dos “sound bites” torna-se… o menos apurado, o menos efectivo. Porque os “candidatos construídos” já não convencem os eleitorados que, agora, anseiam por pessoas que sejam autênticas e não por políticos profissionais de sorriso postiço e frases feitas.
George Friedman (de novo, ele) acaba de classificar este fenómeno como “the crisis of the well-crafted candidate”… Em síntese, em todo o Ocidente, estamos a entrar num novo ciclo político e atingimos o fim do ciclo em que criar pessoas artificiais para as candidatar aos altos cargos políticos funcionava.
O aparecimento, entre os eleitores, deste desejo de pessoas autênticas e o surgir de pessoas autênticas, com vida e profissão próprias, dispostas a candidatar-se são sinais de uma inversão possível do desinteresse ainda reinante, que hoje se manifestou de forma clara, com mais de metade dos eleitores a não comparecerem ao voto em vários dos nossos círculos eleitorais. Esta entrada num novo ciclo poderá – esperemos – significar o fim da actual “democracia da abstenção”.