Cem Anos de Europa
(continuação)
As experiências europeias de assistência económica e financeira iniciaram-se com apelo aos estados-membros da União Europeia para apoiarem directamente a Grécia. O parlamento português, tal como cada um dos restantes parlamentos, teve de votar um apoio sob a forma de empréstimo. Quando tocou a Portugal e à Irlanda, a União Europeia criou Fundos para o efeito(i). Quanto ao Banco Central Europeu, com Mario Draghi e Christine Lagarde, veio a adoptar políticas que poderíamos qualificar de anti – cíclicas.
Numa entrevista recente(ii) a discreta Comissária Europeia para as Reformas e Coesão, Elisa Ferreira, fala da defesa por António Costa de um mecanismo anti-cíclico no orçamento da União Europeia, assumindo ser essa a natureza do PRR. Ora embora este seja muito importante pela sua dimensão e, pelo recurso directo ao crédito por parte da União Europeia, inovador, há que ter em conta, por um lado, que representou uma resposta a uma depressão resultante da quebra de actividade induzida pela pandemia(iii), não a um fase depressiva num ciclo económico, por outro que implicou a tentativa de realizar um volume extraordinariamente elevado de investimentos num período muito curto, sem capacidade administrativa e de resposta dos empreiteiros e fornecedores adequada, alimentando pressões inflacionistas. E que é feito da “reindustrialização da Europa”?
Vertente Político – Económica e Vertente Político-Militar
A desagregação da União Soviética, pelo exercício do direito de saída ou pelo acordo quanto à dissolução, e o fim do Pacto de Varsóvia, por dissolução, a que se seguiu a rescisão dos acordos bilaterais celebrados entre o fim da II Guerra Mundial e a constituição do Pacto em 1955, e a reunificação alemã, precedida por um prévio retorno da Alemanha oriental a uma estrutura federal, não implicaram uma imediata expansão do que veio mais tarde a ser a União Europeia. Mais rápida andou a NATO que assim manifestou a sua “resiliência” e cujas exigências são mais flexíveis, como o Portugal de Salazar teve ocasião de verificar. Por exemplo, o tratamento das minorias falantes de russo da Estónia e da Letónia não passou desapercebido nas instituições europeias, mas para a NATO é uma não-questão.
A guerra entre comunidades na antiga Jugoslávia permitiu reunir à “Europa”, disse-se que por interesse alemão, a Croácia e a Eslovênia, antigas possessões austríacas, mas a Bósnia-Herzegovina continuou a ser o barril de pólvora que fez detonar a I Guerra Mundial, e, se a NATO progride nos Balcãs Ocidentais – foi ela que inventou o Kosovo independente(iv) e para o efeito bombardeou Belgrado incluindo a embaixada da República Popular da China, que não o esqueceu – a União Europeia continua com dificuldade em fazê-lo, em grande parte porque (ainda) tem de credibilizar os processos de integração de novos candidatos.
Não inesperadamente, foram postos em causa os processos políticos de dois países que tinham tentado desenvolver uma espécie de marxismo adaptado às condições árabes – o Iraque, que depois de vencido na I Guerra do Golfo por ter tentado anexar o Koweit, foi novamente atacado e destruído na II por ter alegadamente armas de destruição massiva e estar ligado à Al-Queda, no contexto da mobilização da NATO para ocupar o Afeganistão em retaliação dos atentados às torres gémeas e ao Pentágono, e a Síria, que conheceu uma guerra de todos contra todos, mas foi amparada pela Federação Russa, e foi ainda destruída a Líbia, atacada pela NATO a partir da França e da Itália com o amparo político do Parlamento Europeu. Tudo isto foi despertando sentimentos identitários em comunidades muçulmanas na Bósnia, na Albânia/Kosovo, na Bulgária e na Tchechénia e acabou por reforçar a Al-Queda e depois o Daesh, sendo que para além do Médio Oriente e do Norte de África as perturbações já atingiram outros países africanos. A Europa, ou melhor as suas grandes potências de referência, não tem as mãos limpas nestes processos que têm tido pelo menos o efeito indesejável de incrementar fluxos migratórios em geral, e particularmente os de refugiados, mas também parecem ter contribuído para a chamada “radicalização” de imigrantes de segunda geração.
Não estou propriamente obcecado com a presença americana nos processos políticos europeus e de outros países, mas há suficiente evidência que, designadamente com utilização da NATO, têm pesado bastante na Europa de Leste, em detrimento dos restos de influência russa. Após a “Revolução de Maidan” em 2014, a fuga de Ianukóvytch e a criação, de entre várias tentativas separatistas, das repúblicas de Donetsk e Lugansk, e a reintegração da Crimeia na Federação Russa, é em Minsk, na Bielorússia, que a Federação Russa, o novo presidente ucraniano Poroshenko, a França e a Alemanha – dois parceiros europeus com intervenção histórica na Ucrânia, a cujo grande potencial sempre estiveram atentos – vão tentar construir uma solução. António Guterres aguilhoado mais tarde com críticas à ineficácia da ONU vincará que esta não foi parte do processo de Minsk. Mas a União Europeia também não o foi.
Nos sete anos que mediaram entre a tentativa de Minsk e o início da chamada operação militar especial é lançado um processo de reconquista de posições pelo exército ucraniano e pelos batalhões Azov que leva as repúblicas de Lugansk e de Donetsk, que mantiveram as suas capitais administrativas, a perderem parte das suas posições. E curiosamente há na altura, em conexão com uma reeleição controversa, grandes pressões do “Ocidente” para eliminar o presidente bielorusso Lukashenko, anfitrião do processo, pressões de que ainda estão especialmente activas sanções desportivas.
Bendita Guerra?(v)
Dou aqui por reproduzidos dois artigos por mim publicados no Jornal Tornado: “Revisitando as Catalunhas da Europa” em 13 de Abril de 2022, e “Dois Nacionalismos” em 28 de Junho de 2023. Já me referira no primeiro deles ao papel da Secretaria de Estado americana(vi) e do governo do Reino Unido pós – brexit que se socorre abertamente do MI6, julgo que também é instrutivo perceber como se vai construindo a “resposta” dos países da União Europeia e da própria União.
No domínio político-militar é de registar os pedidos de adesão à NATO da Suécia e da Finlândia, tal como a Noruega (que, tendo apoiado a Ucrânia, não pediu novamente a adesão à União Europeia…) vizinhos da Federação Russa. Assinale-se que as relações entre a Suécia e a Rússia já eram difíceis, e que em tempos os bálticos e os ucranianos eram vistos como tendo afinidades com os suecos. Não sendo os aspectos de família política aqui decisivos, registe-se no entanto que ambos os países perderam os seus governos sociais democratas a favor de coligações de direita.
No domínio político-económico os Estados Unidos, o Reino Unido e a União Europeia convergiram inicialmente numa sanção que hoje faz sorrir – o sequestro de bens dos “oligarcas” russos, designadamente dos seus barcos de recreio, na convicção de que a Federação Russa era um estado dominado pelos oligarcas e que estes fariam cair Putin(vii). Também se apelou à retirada da Rússia das empresas multinacionais, cujos negócios foram comprados por interessados locais em condições vantajosas. Foram sendo adoptadas muitas outras sanções, sendo a que maior discussão levou à recusa de aquisição de petróleo e gás russos na convicção de que a sua venda aos países europeus serviria para financiar o esforço de guerra russo. De certo modo “desacoplaram-se” as economias da União Europeia e a russa. O impacto, outros que não eu o têm discutido.
Talvez prematuramente – uma vez que a guerra não estava acabada e muito menos ganha pela Ucrânia – a União Europeia, com alguma experiência de apoio a países envolvidos em conflitos, começou a apadrinhar a ideia de reconstrução, que se traduziria em encomendas às suas empresas, chegando ao ponto de se fazerem estimativas de custos, e daí passou-se para a ideia de uma adesão rápida à União, patrocinada pela Comissão Europeia de Ursula Von der Leyen. Trata-se de um “candidato” que em termos de área, de população e de potencial económico tem uma dimensão significativa e a quem as facilidades concedidas no escoamento de produtos agrícolas, já criaram, como se sabe, problemas com os agricultores de países vizinhos, e a União Europeia sonha fazer reverter os fundos russos sequestrados, incluindo oriundos das próprias reservas oficiais, para essa “reconstrução”. Mas a adopção de uma via rápida para reconfigurar a Europa poderá levar a uma quase passagem administrativa dos Balcãs Ocidentais, da Moldova, todavia profundamente dividida, e da Geórgia.
Regressando ao domínio político militar: a Ucrânia manifestou-se também desejosa de integrar a NATO, mas tem recebido a resposta de que enquanto país em guerra não poderá fazê-lo, no entanto tem sido apoiada individualmente por muitos dos membros. Inicialmente na Alemanha foi apoiada pela belicosa Annalena Baerbock dos Verdes, que desapareceu durante algum tempo do cenário ucraniano, onde era visita regular, depois de o comboio em que deslocava ter sido perseguido por um avião russo, mas a substituição da ministra da defesa social democrata por um mais enérgico Pistorius permitiu afastar a linha tradicional alemã de não realização de operações no estrangeiro. Um passo decisivo foi dado quando se delineou um esquema para financiar por verbas comunitárias as despesas militares ucranianas, inclusive o reembolso de ajudas em dinheiro ou material adiantadas pelos estados-membros. A questão da utilização das armas oferecidas pelo “Ocidente” para ataques em solo russo parece ter recebido de momento uma resposta satisfatória para os vários promotores. A França em que Macron se dava inicialmente por capaz de conversar com Putin fala agora de enviar tropas. Mais uma competição franco-alemã, mas esta “bendita guerra”, tendo criado um inimigo comum, manterá a disputa num quadro amigável. E já se fala de um futuro comissário europeu para a defesa e da alteração das regras de votação dentro da União Europeia.
Há dois aspectos nesta “bendita guerra” que me merecem especial atenção.
O primeiro tem a ver com a credibilidade democrática das instituições europeias, que apresentam a guerra como decorrendo na Europa, ou pelo menos nas fronteiras ou às portas da Europa, e o exército da Federação Russa ( não-Europa) como disposto a marchar sobre todas as capitais europeias se vencesse o ucraniano, quando não conseguiu sequer expulsar o inimigo de todas as posições ocupadas em Donetsk, e em geral se dissimulam as origens do conflito, mostrando a resistência na Ucrânia ao serviço militar e a reivindicação de limites máximos de duração deste que se está muito longe de um clima de “pátria em perigo”. O Parlamento Europeu tem um grande peso nesta narrativa e foi muito significativo que, quando alguns eurodeputados socialistas (entre os quais Maria Manuel Leitão Marques) não acompanharam uma votação de um projecto de resolução do PPE lhes tenham “tirado os nomes” para divulgação. Não acompanhei o caso da eurodeputada, outrora membro do Partido Comunista da Letónia, acusada de ser espia russa.
O segundo tem a ver com o próprio funcionamento não democrático das instituições ucranianas, em que foram proibidos em 2015 os três partidos comunistas, em execução de uma deliberação da Rada (parlamento) que no mesmo dia, noutra deliberação, estabeleceu que “O Estado reconhece que os lutadores pela independência no século XX desempenharam um papel fundamental na restituição do Estado ucraniano, proclamado em 24 de agosto de 1991“(viii), tendo sido posteriormente ao início das hostilidades proibidos outros 11 partidos. Partidos de oposição são banidos na Ucrânia e “política de informação unificada” é imposta. A Rada tem deste modo funcionado com entre 300 e 330 dos 450 eleitos e julgo adequado não se terem convocado novas eleições quando Zelenski terminou o seu mandato, uma vez que não há uma situação de normalidade democrática. Curiosamente uma sondagem Gallup através da qual o governo tentou legitimar o seu programa para a guerra incluindo a recuperação da Crimeia, mostrou resultados muito diferentes nas províncias russófonas.
Deixarão a Ucrânia aderir à União Europeia sem restabelecimento de um regime democrático? Tal não me admiraria numa Comissão em que o PPE escolheu aliar-se à extrema direita com vínculos mais estreitos com os herdeiros dos partidos fascistas históricos.
Regressando brevemente a Portugal
O grande apoio à Ucrânia nos inquéritos de opinião pode ter a ver com o carácter solidário dos portugueses, e o carácter belicoso das reacções divulgadas – por exemplo a evocação da padeira de Aljubarrota que matou sete castelhanos refugiados no seu forno – com a circunstância de a guerra estar muito longe.
Bem disse António Costa que até o Chega apoiava o esforço ucraniano, todavia só Mário Machado, que sabia a quem havia de se dirigir, foi até à Ucrânia – os apoiantes do Chega, CDS, PSD, PS, Livre e BE terão ficado pelo país – aliás pelo que vi em caras conhecidas no Fb registava-se nos primeiros tempos nas hostes do PS alguma confusão entre “comunistas” e “russos” e nos 50 anos do PS ter-se-á entoado de novo o “Portugal é do Povo, não é de Moscovo!”.
António Costa sempre terá estado consciente de que a adesão da Ucrânia à União Europeia iria mudar as regras do jogo e pôr em causa os futuros apoios financeiros a Portugal mas essa percepção não estará ainda generalizada.
A transmissão de pastas terá aqui corrido mal. Costa prometeu, após falar com o “líder da oposição”, então Luís Montenegro, cem milhões de euros para uma vaquinha checa de compra de munições em que entrariam uns 20 países, Miranda Sarmento quando iniciou funções berrou que essa despesa não tinha cabimento, Luís Montenegro reivindica tê-los pago em Abril, afinal foram até agora apenas 5 países a pagar. Discutam qual é o mais ucraniano…. Quanto aos meios cedidos por Portugal que Nuno Melo autorizou virem a ser utilizados na Rússia, talvez estejam em causa os Kamov oferecidos por Helena Carreiras. Se os fizerem voar talvez possam servir como kamikazes.
O Público tem uma cobertura do conflito que é praticamente só opinião mesmo quando disfarçada de informação. Em todo o caso gostei de ver o jornalista que assegurava a cobertura de Lisboa a documentar-se sobre Kherson e a tentar perceber a realidade.
O mais divertido foi ver um candidato a eurodeputado a tentar falar com a família. Falo de João Cotrim de Figueiredo a querer falar com Zelenski aquando da “visita de médico” deste há dias sob pretexto de que a Iniciativa Liberal era da família política do Servo do Povo. De facto a embaixadora ucraniana de serviço em 2022 tinha escolhido a IL para se incorporar na manifestação de 25 de Abril. A actual recebeu outro dia a vassalagem de Marta Temido.
A Europa, 100 anos depois | Parte I
Notas
(i) Cuja liderança na actual organização foi recentemente disputada, sem sucesso, por um candidato de um país anteriormente assistido – o antigo Ministro das Finanças João Leão – que foi parar depois ao Tribunal de Contas Europeu.
(ii) Ao Público e Renascença, ver Público de 6-5-2024 Elisa Ferreira: “Abrir a discussão sobre tropas na Ucrânia vai destruir a coesão interna na UE”
(iii) Quebra que não terá tido em Portugal uma grande expressão, uma vez que o turismo recuperou muito rapidamente.
(iv) Muitos estados, inclusive da União Europeia, não reconhecem a independência do Kosovo.
(v) Ouvi em Luanda / 1969 falar de “bendita guerra” a propósito do grande desenvolvimento que a então Província de Angola conheceu após os acontecimentos de 1961.
(vi) E da criação de um “Instituto para o Estudo da Guerra” para servir de fonte por esse mundo fora, evitando a constante emissão de posições em nome do Departamento da Defesa…
(vii) O que tem permitido continuar a glorificar Stefan Bandera e o autor de Pogroms Simão Petliura, o qual, apesar dos protestos do Congresso Mundial Judaico, substituiu Máximo Gorki no nome de uma rua quando o exército ucraniano reocupou Izium, na província de Karkhov.