O sentido da morte reflecte o que pensamos da vida tal como a morte também dá sentido à vida.
A morte, na medida em que é uma ruptura, é representada e vivida como o Nada que ameaça o Ser. E trata-se de um nada com um estatuto especial, pois a morte vem carregada de densidade ontológica — a morte não é um mero vazio, a morte não é o nada absoluto.
É mais ou menos consensual que o problema da morte entronca na magna e perene questão do sentido da vida.
Por isso, ao reflectirmos sobre a eutanásia e o suicídio assistido colocamo-nos no seio duma questão central do pensamento filosófico e da história das ideias e cuja centralidade não decorre duma disciplinar arrumação dos conceitos, mas por se tratar duma interrogação que sempre inquietou o homem de todas as épocas.
Ao ponto de podermos dizer que o homem só é homem, só cumpre e realiza a sua humanidade essencial, na medida em que se interroga sobre o sentido da sua existência.
Ao interrogarmos-nos sobre a morte, interrogamos também a vida e o próprio homem. Quando este pensa a morte, é o sentido da vida, da sua vida, que é arrastado na sua reflexão. Ora, discorrer sobre a eutanásia e o suicídio assistido leva-nos a pensar a morte e o sentido da vida nas actuais condições do nosso mundo artificial, maravilhoso, virtual.
Como também somos levados a deixar de reflectir sobre a vida em abstracto para questionarmos o próprio viver concreto.
O mundo actual, a vertiginosa mudança civilizacional tem também as suas repercussões sobre a morte e o morrer e o que pensamos sobre isso. A nossa realidade, dominada que está pelas tecnologias de informação e comunicação, a globalização do mundo e das culturas e o encolhimento da realidade, tudo isso são factores que terão que ter consequências na situação do homem e do mundo.
Em particular, como veremos mais adiante, foi o extraordinário desenvolvimento da medicina que acabou por nos forçar a uma nova reflexão sobre quando se morre e como se morre. Ao mesmo tempo que a medicina evoluía, que a esperança média de vida aumentava, que as técnicas de suporte e apoio à vida se desenvolviam, aumentaram os nossos problemas em relação ao fim da vida.
O que significa que, também temos, pois, que resistir à tentação de pensar a morte fora do seu contexto concreto e esse contexto é, para lá da própria vida, a sociedade ocidental e ocidentalizada, enquadradas pelas novas estruturas tecnocientíficas. A morte que acontece, ocorre no seio dum viver completamente diferente do modo de viver (e de morrer) dos nossos pais e dos nossos avós.
Em menos de uma geração tudo se tem alterado radicalmente. O mundo avançou demasiado rápido e tememos ter ficado para trás.
E entre nós? Ainda não sabemos, com rigor, como é que se morre em Portugal; mas temos uma ideia de como se vive e com base neste dado, prevemos que os últimos momentos da vida das pessoas sejam vividos de um modo que deve deixar muito a desejar. Vive-se mal, pelo que não se deve morrer contrariando o modo tão precário de se ir vivendo e sobrevivendo.
A discussão sobre a eutanásia e os últimos momentos da nossa existência lança um repto à nossa própria cultura e civilização, aos seus princípios e valores, e também, não o esqueçamos nunca, ao modo como esses valores se concretizam, ou não! O que também não deixa de ser significativo e revelador, porque o modo como entende a morte reflete a sua concepção da vida.
A vida não tem sentido sem a morte. Ou melhor, o sentido que esta vida tem, deve-o à morte que não se ausentou do nosso viver.
Perante a brutalidade da morte, o homem é conduzido a interrogar-se sobre a sua vida. O reconhecimento mais cruel dum fim e a consciência aguda da finitude colocam o homem perante a sua fragilidade e questionam-no sobre a sua posição no cosmos. Os opositores da eutanásia consideram que este período de interrogação do paciente pode constituir uma fase de aprofundamento e enriquecimento espiritual, que pode ser levado por diante em diálogo com aqueles que lhe são próximos e que a eutanásia viria bloquear.
Contudo, este argumento pode ser devolvido à procedência, já que, podendo decidir o momento da sua morte, o paciente terá melhores condições para estabelecer esse diálogo, sem a pressão duma morte que se avizinha avassaladoramente e ocorre independentemente da sua vontade e desejo.
Ao programar a sua morte e o momento em que esta poderá ocorrer, evitando entrar num período de degradação física e psicológica ou mesmo de inconsciência, sempre poderá reunir à sua volta aqueles que mais ama, dando as últimas instruções e recomendações ou resolvendo ainda algum problema mais íntimo e privado que teria ficado por esclarecer ou resolver, pois a proximidade dos últimos dias pode constituir ainda a ocasião propícia para a sua abordagem.
A eutanásia e o suicídio assistido não bloqueiam a experiência duma reflexão sobre o sentido da vida.
As decisões por aquelas opções é que serão certamente precedidas por um debate individual ou em grupo, interior ou não, sobre o sentido da vida e do sofrimento infausto.
Estranheza, medo, acontecimento natural. O que é inegável é que a morte está ligada à vida. E rapidamente se verifica que vida e morte se iluminam mutuamente. A nossa visão da morte depende do sentido que atribuímos à vida. Mas também é inegável que o acontecimento brutal e irrecusável da morte condiciona o sentido que atribuímos à vida e aos vivos.
Este mútuo condicionamento não nos pode, contudo, fazer esquecer que é da vida que partimos. De tal modo é assim que é o modo como vivemos a vida que nos prepara ou não para compreender e aceitar a morte, tornando-a mais ou menos dolorosa. É uma vida repleta de experiências, uma vida realizadora dos nossos desejos, vivida como uma aventura aberta e reveladora da nossa disponibilidade para os outros que permite atingir a satisfação do Imperador Adriano, descrita por Marguerite Yourcenar que, já velho, afirmava serenamente que já podia entrar na morte de olhos bem abertos.
Contudo, o rosto morto é sempre representado com os olhos fechados. Se os olhos do cadáver estiverem abertos, haverá sempre alguém que se apressará a fechá-los.
Apesar de nos situarmos, desde já, num campo de profunda radicalidade, o problema da morte remete-nos para questões mais perturbantes e que se prendem com o sentido da existência humana diante do mal e do sofrimento.
De um modo mais íntimo, o homem pergunta por que razão é ele submetido à prova do sofrimento ao mesmo tempo que o mundo transcendente, que dava sentido ao sofrimento e à morte humanos, se vai esboroando.
Será que devemos reconhecer que, afinal, não há sentido e a realidade é absurda? Ora, admitindo o absurdo da vida podemos acabar por tornar a existência humana ainda mais sofredora.
Contudo, não se pretende apenas compreender a morte em si mesma. A morte é essencial para que o homem compreenda a vida.
A morte é a fronteira da vida e está constantemente presente em tudo o que vive e é vivo. O homem, ao mesmo tempo que vive, vai também morrendo.
Segundo Heidegger, o homem, enquanto ser-para-a-morte vai vivendo todos os dias a pequena morte. Dessa omnipresença da morte resulta para o homem a radical consciência da sua finitude. Talvez por ser insuportável a consciência de um fim certo, exista no homem um sentimento inconsciente de que é imortal. Por muitas vias, sempre o homem quis fugir à morte, sonhando e procurando poções mágicas que lhe assegurassem a imortalidade.
No mesmo sentido, outros procuravam o elixir da juventude, na tentativa desesperada de se manter eternamente jovens.
No entanto, a imortalidade tem os seus inconvenientes. Segundo Ortega Y Gasset, “a morte é o que comprime e intensifica a vida”[1]. A duração limitada da vida obriga-nos a saborear melhor o que a própria vida nos dá, bem como a fazer o melhor possível, conscientes de que não existirão muitas possibilidades de se repetirem certas oportunidades que nos são oferecidas.
A morte vem comprimir a nossa vida. Se esta fosse infinita, o sentido dos nossos gestos e dos nossos actos acabava por se perder nesse mare magnum duma vida sem limites, que acabava por absorver tudo o que nós fizéssemos.
A morte comprime a nossa existência, vem dar urgência e significado a tudo o que fazemos. Acaba por dar brilho à nossa existência.
A sua luz não se perde numa existência infinita. Por isso, não é necessariamente má a existência da morte.
[1] Cit. in CABELLO MOHEDANO, Francisco A. et al., Entre los limites personales y penales de la eutanasia, Cádiz, Universidad de Cadiz, 1990, pp. 20-21.