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Sexta-feira, Novembro 1, 2024

A febre dos preços

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

Penso por isso que o Governo passou este seu primeiro teste positivamente, mas que terá de olhar com atenção para os perigos que enfrenta neste desafio maior que é o da subida geral de preços sem se tornar prisioneiro de interesses particulares.

  1. Do que se trata?

Tentando fugir ao escolaticismo, convém ter em conta alguns pontos mínimos para podermos debater o tema que voltou a fazer-nos companhia e que ameaça ficar connosco por tempo dificilmente determinável.

‘Inflação’ é a forma abreviada de designar a ‘inflação da massa monetária’, ou seja, o crescimento da moeda. A moeda pode definir-se de muitas maneiras, mas quando se utiliza o termo de ‘massa monetária’ normalmente recorre-se a uma definição relativamente alargada da moeda enquanto meio de pagamento.

O uso da palavra ‘inflação’ para descrever subida de preços decorre de uma interpretação da relação entre a massa monetária e o nível geral de preços feita pela chamada teoria quantitativa da moeda, cuja formulação europeia mais simples e mais antiga é a da escola de Salamanca do século XVI.

A fórmula básica para a descrever é o MV = PT, em que M é a massa monetária, V é a sua velocidade de circulação, P é o nível de preços e T é o volume de transações. O que a teoria quantitativa nos diz é que, para determinados volumes de transações e de velocidade de circulação de moeda, se aumentarmos a massa monetária, o nível de preços aumenta de forma proporcional.

É este o fenómeno que foi observado no século XVI especialmente a partir de Espanha com o grande afluxo de ouro, e especialmente prata, vindo da América, que aumentou a massa monetária e em função disso uma subida de preços.

Que a subida de preços se dê necessariamente por essa razão e dessa forma é, no entanto, contestado por inúmeras escolas, sendo a Keynesiana a mais conhecida das doutrinas económicas, existindo outras, por exemplo, relativas a poder de mercado ou ainda sociológicas. Por essa razão é mais conveniente usar o termo ‘subida de preços’ que o de ‘inflação’.

Para o Keynesianismo, a questão essencial é a de saber se a economia está ou não a funcionar em pleno emprego. Se não o estiver, é possível fazer com que o aumento da massa monetária faça aumentar o volume de transacções (implicando crescimento económico) e não necessariamente o nível de preços.

Sociologicamente, podemos ver a subida de preços como luta entre vários sectores da sociedade. Para entendermos o que isto quer dizer temos de ter em conta que se os preços aumentarem de forma exactamente proporcional, teremos apenas ‘ilusão monetária’, e tudo ficará na mesma, ninguém ganhando ou perdendo o que quer que seja. Assim o fundamental é saber o que aumenta mais e o que aumenta menos para perceber quem ganha e quem perde nesse jogo.

A aproximação para o ‘poder de mercado’ é visível nas chamadas ‘crises do petróleo’. Se for possível criar um cartel que domine um produto essencial para a economia, como o petróleo, é possível fazer subir o seu preço, restringindo a oferta, com consequências em cadeia.

Posto isto, as subidas de preços são normalmente medidas por índices, sendo o mais conhecido, e aquele que normalmente temos presente quando falamos do assunto, o índice de preços ao consumidor. A figura do consumidor, como a generalidade das que se utilizam nestas conversas, é uma abstracção estatística elaborada com base em médias (se A come dois frangos e B não come nenhum, diz-se que o ‘consumidor’ consome um frango), utilizando um determinado cabaz de compras, que é supostamente representativo durante um longo período de tempo (normalmente de dez anos) e que ignora portanto a mutação do que nos é oferecido e do que é procurado, nomeadamente pelo efeito das mudanças de preços que, paradoxalmente, é o que se quer estimar.

Acresce a isto que em nenhum caso é sequer teoricamente possível (é tema a que dediquei um livro) determinar a evolução da satisfação do consumidor. Em casos triviais, como por exemplo aquele a que assistimos hoje, poderemos constatar que há subida de preços e que, quem tem um salário ou uma pensão que não aumenta ou aumenta muito menos do que o índice, estará a perder poder de compra.

Agora tudo o que vai para além disso, como quantificar o que se perde ou ganha, ou tirar conclusões em situações menos claras, aí, os números oficiais não nos servem de grande coisa e apenas nos fazem mergulhar na ficção travestida de ciência.

Como última nota importante, temos que esta noção de aumento de preços que se refere directamente aos preços ao consumidor estende-se normalmente à generalidade dos outros preços, com a importante excepção dos activos financeiros. Os preços dos activos financeiros quando, como é o caso presente, reflectem uma baixa do crescimento económico, ou quando, como tudo indica que virá a acontecer, enfrentarem políticas de restrição da massa monetária, diminuem.

  1. A situação presente

Se partirmos da análise periódica feita pela OCDE, que tem como referência os dados dos preços relativos a março (a próxima análise está anunciada para breve, a 2 de junho), vemos uma subida muito pronunciada dos preços da energia, e em menor grau de produtos alimentares, e que se fazem sentir em todos os países da OCDE, com algumas flutuações importantes.

Na OCDE, o aumento anual dos preços energéticos atingiu 33.7%, o seu valor mais alto desde maio de 1980.  A guerra desencadeada pela Rússia é o factor mais próximo que condiciona o aumento de preços energéticos, mas não é o único. Os preços da alimentação costumam ser particularmente influenciados pelos da energia, por incorporarem uma componente energética elevada, e é provável que o impacto se venha a fazer sentir com algum desfasamento. A invasão russa está a ter um impacto directo grande, por ter paralisado a actividade e a exportação agrícolas ucranianas.

A quebra de actividade (e especialmente de transportes) que se seguiu às políticas de confinamento e outras restrições fizeram descer no imediato os preços energéticos, estancando também muito do investimento no sector. O retomar geral da actividade económica (com a exclusão significativa da China, onde o covidismo é especialmente acentuado) contribuiu também para a marcada inversão de tendência nos preços.

Com flutuações e diferenças significativas, as políticas sanitárias 2020-2022 foram acompanhadas também de políticas orçamentais e monetárias expansionistas para amortecer o seu impacto económico negativo. Se, de acordo com a visão keynesiana, essas políticas podem mobilizar forças produtivas não usadas, sem com isso originar um aumento geral de preços, não penso que se possa fazer uma política de expansão monetária para incentivar a desocupação (o inverso do que é suposto nos manuais) sem que isso deixe de ter repercussões no nível de preços.

O problema essencial, que a desinformação institucional reinante procura esconder, é que o actual processo de subida de preços decorre das opções políticas tomadas na chamada ‘crise sanitária’ e que a ideia de que se pode bloquear economias sem custos se comprovou ser demagógica.

Em Portugal, de acordo com os dados publicados pelo Instituto Nacional de Estatística, o padrão de comportamento de preços na OCDE foi seguido em Março, e esse aumento de preços foi substancialmente acentuado em Abril, não havendo razões para pensar que esse aumento de preços no nosso país ou no mundo vão ser ultrapassados a curto prazo.

A guerra promovida pela Rússia arrisca-se a ser prolongada e pode mesmo vir a desenvolver-se para novos cenários. As políticas monetárias e orçamentais estão agora a inverter o seu sentido, sendo que, como sempre aconteceu no passado, é difícil saber até que ponto elas vão ter mais impactos positivos na travagem dos preços do que negativos na actividade económica. Mais ainda, estamos longe de saber o tempo necessário para que os efeitos sejam sentidos.

O impacto da inversão das políticas monetárias expansionistas no preço dos activos financeiros, especialmente dos mais especulativos, não constitui razão para qualquer preocupação especial entre nós, mas já o mesmo não é verdade em relação ao aumento de juros que tem um impacto muito grande numa economia muito endividada como a portuguesa.

  1. Política orçamental em Portugal

O orçamento para 2022 foi finalmente aprovado em 27 de maio. O debate orçamental foi dominado pelo processo inflacionário em curso, com o governo a reclamar ter reservado 1800 milhões de euros para ‘mitigar o efeito da inflação’.

O Governo rejeitou as propostas de indexação de impostos (feita pela IL) e de salários (feitas pelo PCP e BE) aos últimos números mensais conhecidos para o índice de preços no consumidor. Aí esteve naturalmente bem, porque das únicas coisas sobre as quais há algum consenso entre economistas é que a indexação imediata em situações destas é o pior dos remédios a tomar.

O PSD e o Chega optaram antes pela posição bota-abaixo que na nossa cultura política não traz necessariamente custos eleitorais quando não tem consequências palpáveis. Creio que fazem mal, porque a sociedade só teria a ganhar com a existência de visões alternativas credíveis que pudessem ser comparadas com as do Governo.

O PSD-Madeira, o PAN e o Livre optaram por negociar, numa perspectiva parcial que é naturalmente a deles, regional num caso, e sectorial nos outros dois. Se me parece que o PAN conseguiu ter aqui um bom desempenho, penso que a colagem do PS ao Livre é um erro crasso que pode vir a ter o mesmo resultado que teve nas autárquicas em Lisboa.

Preferir uma intervenção parcial para ajudar casos que sofram especialmente do fenómeno da subida de preços parece-me melhor do que a alternativa da indexação, mas não é uma opção sem perigos. Ela propicia o reforço de mecanismos burocráticos custosos, clientelismo, e erros vários de visão, e precisa por isso de ser acompanhada de um escrutínio cerrado.

Acresce a isto que ninguém pode assegurar o rumo que este monstro que voltou a acordar vai tomar, e é, portanto, necessário criar mecanismos de prevenção e dar alguma flexibilidade ao desempenho orçamental, sem que esta flexibilidade seja manipulada para fins indevidos.

O actual Ministro das Finanças partiu para o seu primeiro teste político em posição especialmente frágil. Foi nomeado Ministro após protagonizar a maior derrota eleitoral socialista nas autárquicas o que, não sendo constitucionalmente proibido, é politicamente desaconselhável por mostrar um pouco saudável respeito pelas decisões do eleitorado (goste-se ou não delas). Acresce a isto que a sua gestão orçamental na autarquia não teve uma boa imagem. Se é certo que é fácil nas democracias pintar imagens que pouco têm a ver com a realidade, dificilmente terá sido esse o caso, sendo certo que António Costa não tem tido por hábito desafiar imagens públicas, ficando por entender porque o fez agora. O pior de tudo, como o disse antes, é o risco de a política financeira ficar prisioneira da lógica modernaça e burguesa do Livre, como o ficou nas autárquicas.

Penso por isso que o Governo passou este seu primeiro teste positivamente, mas que terá de olhar com atenção para os perigos que enfrenta neste desafio maior que é o da subida geral de preços sem se tornar prisioneiro de interesses particulares.

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